Por Leonardo A. Roberto*
Na contramão da “boiada” de Salles, 67 lideranças indígenas Halíti, autodenominação do povo Pareci, acompanhados de seus guerreiros, guardam a Terra Indígena Ponte de Pedra, local sagrado para seu povo, desde quarta-feira (08/07). Daquela região haveria saído o herói mítico Wazaré, da fenda aberta na pedra pelo raio de Enoharé (Enoré), senhor do céu e da terra. A partir dessa abertura no Sakuriu Winã, conhecida agora como Rio Ponte de Pedra, Wazaré daria o nome aos seres e a todas as coisas. Hoje, fazendeiros e madeireiros invadem o território, demarcado e pertencente à Amazônia Legal, sem se abster do uso de armas de fogo, como registrado no vídeo filmado na tarde de terça-feira (07/07):
A filmagem mostra o momento em que tiros são disparados, ameaçando funcionários da FUNAI que visitavam a região invadida, em veículo oficial, ainda que sem adesivos de identificação.
O episódio resultou em uma operação conjunta na Terra Indígena Ponte de Pedra, na tarde de quarta-feira (8), com a participação das associações Halíti-Pareci Waymarê e Halitinã, das cooperativas Coopihanama, Coopiparesi, Coopirio, de caciques e guerreiros, com apoio da FUNAI de Campo Novo dos Parecis e da Polícia Militar. O autor dos disparos foi preso nessa operação.
É relatado, via mensagem de áudio encaminhada pelo WhatsApp, que no dia anterior, o proprietário da fazenda admitiu a ação dos funcionários, alegando que os “tiros de aviso” se deram por conflitos com outros dois grupos de fazendeiros que disputam a terra invadida. Na mensagem é mencionada também a exploração ilegal de uma madeireira dentro da terra indígena. Relatou-se conflitos anteriores com o IBAMA, por operação que havia resultado em apreensão de maquinário agrícola na região e o incômodo do fazendeiro pelo registro de um boletim de ocorrência junto à Polícia Militar e pelo ofício enviado à Polícia Federal, que solicita ao General de Brigada Reinaldo Salgado Beato, uma operação de fiscalização da referida terra.
A Comissão Operação Indígena Halíti Pareci informa que seus encarregados vistoriaram as divisas do território para identificar irregularidades e infrações. Exigem providências imediatas por parte das autoridades competentes visando a retirada dos invasores e o desmonte das estruturas construídas dentro do território, alheios aos interesses desses indígenas. Comunicam ainda o prazo de 10 dias para o início das operações, caso contrário, as providências serão tomadas por eles próprios.
Territórios vão além da agrimensura. Por mais que seja uma concepção extraterreste para determinados extratos da sociedade, são mais do que meros espaços quando concebidos culturalmente por um povo, projetando-se ali os seus modos de vida.
Entender a cultura como uma entidade viva pode ser ainda mais perturbador para um produtivista obstinado a impor sua visão monolítica de mundo. Para eles, é inconcebível que culturas alheias a sua mantenham a legitimidade de suas reivindicações caso não se engessem no tempo, como se revogassem seu direito ancestral ao possuírem camionetes e celulares. Culturalmente, devem permanecer ou desaparecer.
Nessa estreiteza conceitual, não importa se os Halíti são, historicamente, povos caçadores/coletores que já não podem mais caçar, habituando-se, ao longo de séculos, a percorrer distâncias hercúleas por vários dias, no imenso Chapadão dos Parecis, dispondo de um exímio entendimento de suas presas, imitando suas vocalizações, manipulando a direção de odores ao vento para apurar ou despistar o olfato e usando técnicas de fogo e camuflagens para encurralar as presas. Os patronos ruralistas desconsideram que a agricultura dos Halíti, nessa extensa área, limitava-se a pequenas roças nas matas ciliares próximas das aldeias. Para alguns, na mão dos índios, a terra não passa de espaço ocioso.
O mesmo território Indígena Ponte Pedra já havia sido campo de disputa de fazendas e hidrelétricas de grandes grupos e a crise de saúde pública é a motivação necessária para o avanço sobre áreas indígenas protegidas, como expressado por Ricardo Salles na reunião ministerial de 22 de abril, 10 dias depois da demissão do diretor de proteção ambiental do IBAMA que havia coordenado uma mega operação do órgão para o desmantelamento de garimpos ilegais no Pará. Não é demais lembrar que o Ministério Público Federal pede afastamento do ministro por improbidade administrativa.
Os rompantes de produtores rurais não só ameaçam patrimônios arqueológicos fundamentais para esses povos, sua ligação sagrada com a terra, mas sua própria existência. Desde março de 2020, a FUNAI suspendeu a emissão de novas autorizações para a entrada em terras indígenas. A invasão de suas terras é especialmente cara à saúde dos povos tradicionais, particularmente vulneráveis à COVID-19. O contágio é 84% acima da média nacional e a mortalidade 150%, segundo pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) em parceria com a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia (Coiab).
O ministro do Supremo Tribunal Federal, Luis Roberto Barroso, determinou nessa mesma quarta-feira (08) que o governo adote uma série de medidas para conter o contágio e a mortalidade por coronavírus entre populações indígenas, decidindo em favor de ação movida pela Articulação dos Povos Indígenas no Brasil (Apib) e de seis partidos políticos, prevendo, inclusive, barreiras sanitárias e contenção de invasões.
O presidente da república, por sua vez, sancionou, com 16 vetos, a lei que prevê medidas de proteção para comunidades indígenas durante a pandemia. Entre esses dispositivos, barrou os pontos que previam a garantia do acesso emergencial, de forma gratuita e periódica, à água potável, materiais de higiene, leitos hospitalares, UTI’s, respiradores mecânicos, materiais informativos sobre a COVID-19 e ampliação de pontos de internet nas aldeias, além de vetar o acesso facilitado ao auxílio emergencial. Tudo isso em uma quarta-feira, às vésperas do Ritual da Menina Moça, Hotxikwatidyo para os Halíti.
Enquanto os governos federal, estadual e municipal disputam o lugar de mais comovidos pela morte do pastor da Assembleia de Deus, tendo sido decretado luto de três dias no estado de Mato Grosso e no município de Cuiabá, nem Emanuel, tampouco Mauro, demonstraram qualquer rastro de desconsolo pela morte do cacique Xavante Domingos Mahoro, 60 anos, da Terra Indígena de Sangradouro, no município de General Carneiro. Sua família havia entrado com um pedido na justiça para que o cacique fosse transferido de um hospital particular em Primavera do Leste, sem leito de UTI, para que chegasse em Cuiabá já em estado grave, morrendo nessa mesma quarta-feira (8).
Assim, no novo epicentro da COVID-19 no Brasil, estado campeão em subnotificação, se esvai mais um traço de memória indígena, do equilíbrio ecológico e do ensejo às etnociências para dar lugar ao pleito de celeiro do mundo, da depredação ambiental como política de estado e das terras profanadas em nome do ouro verde.
É possível denunciar ilícitos em terras indígenas, através da Coordenação Geral de Monitoramento Territorial da Funai (CGMT).
Fonte: Diversidade Sociocultural em Mato Grosso. Machado, M.F (org); Azem, M; Vicente, Luiz. Cuiabá, MT. Entrelinhas, 2008.
*Leonardo A. Roberto é estudante de mestrado no programa de Estudos de Cultura Contemporânea na Universidade Federal do Mato Grosso (ECCO-PPG).
[…] quando um dos ocupantes da comitiva avisou: “Acelera, tão atirando em nós!”. No vídeo gravado pelos servidores, é possível ouvir o som das balas estufando na lataria da caminhonete […]
[…] desespero quando um dos ocupantes da comitiva avisou: “Acelera, tão atirando em nós!”. No vídeo gravado pelos servidores, é possível ouvir o som das balas estufando na lataria da caminhonete […]