Por Larissa Campos
Com os olhos postos na vela que arde sobre a mesa, mergulho o pensamento numa comparação entre chamas e pessoas. Assim como as chamas, pessoas também se apagam, algumas antes mesmo de fazer a travessia tão temida. Tantas chamas se apagaram nos últimos meses, nem sei dizer quantas, que parecemos imersos, todos nós, numa escuridão que se arrasta, feito visita incômoda que se recusa a ir embora.
No final de abril, a luz de meu avô se apagou. A chama de vida que nele ardia enfraqueceu até se apagar por completo. Mais uma voz que não será ouvida, embora eu ainda a escute, com clareza e atenção. Fala comigo, Seu Álvaro, fala para sempre! Ainda escuto tua voz aos meus ouvidos e ela ajuda a dar corda às memórias cujos fios estão diretamente ligados ao meu relicário maior, o coração.
No dia em que meu avô morreu e nos dias que se seguiram, eu soube de muitas coisas sobre ele. Sensibilizadas pela passagem, pela travessia, as pessoas libertaram a memória e deixaram que muitas histórias viessem à tona. Ao ouvir todos os casos narrados, cresceu em mim o desejo de saber mais daquele homem, de conhecer outros casos que, certamente, ninguém mais saberá. Quantas perguntas não feitas para um acervo de respostas inexistentes?
Pelos pensamentos e conversas dos dias de luto, nasceram construções mentais de árvores genealógicas, tentativas de compreender linhagens e formações familiares. Uma árvore em que a maioria dos personagens têm rostos desconhecidos e histórias mais desconhecidas ainda. A constatação, por fim, chega a ser um tanto óbvia: sabemos pouquíssimo das nossas próprias origens familiares, daqueles que vieram antes de nós.
Após pensar tanto sobre essas questões, seria natural que o trabalho da escritora Letícia Wierzchowski em “Uma ponte para Terebin” chegasse a mim de forma não menos tocante. No livro, ela narra a história de seu avô, Jan Wierzchowski, um polonês que deixa a terra natal em busca de oportunidades no Brasil. Ele desembarca no Rio Grande do Sul em 1936 e, aproximadamente um ano depois, se casa com Anna Richter, a avó de Letícia.
Mesmo com a distância, “Janek” (forma carinhosa como Anna chama o marido) mantém o amor pelo país de origem, em especial a fazenda localizada em Terebin, onde ficaram seus pais e irmãos. Quando a Segunda Guerra Mundial é declarada, Jan passa a nutrir o desejo, cada vez mais forte, de voltar à Europa como soldado voluntário para lutar por sua pátria. A essa altura, ele leva uma vida pacífica em Porto Alegre, dividindo-se entre os dois trabalhos e a vida familiar, na companhia de Anna e do filho do casal.
Para construir a trama e recontar os passos dados por Jan, a escritora gaúcha iniciou um processo de pesquisa em busca de histórias perdidas. Ou melhor: aparentemente perdidas. Letícia visitou órgãos públicos à procura de documentos, reuniu fotos e papeladas de família, passou por embaixada, consulados, contou com apoio na tradução de cartas e outras fontes que chegaram até ela.
Feito Anna Wierzchowska, a avó que fazia vestidos, Letícia costura pedaços da vida do corajoso Jan, com camadas de realidade e ficção. Nesse alinhavar de histórias e perspectivas, a autora brinca com a imaginação (dela e do leitor) e entre outras coisas, escreve sobre velhos e velhas registrados em fotografias. De dentro de caixas, onde essas fotos estavam guardadas, seres até então estáticos ganham vida e conversam com o leitor. Enquanto isso, nas linhas escritas pela neta, Janek renasce e se veste de sua própria história.
Muitas chamas se apagaram nos últimos meses. Eu sei e você também. Meu avó, sempre tão animado, não poderá me acompanhar em outras tardes de prosa e chimarrão. Tardes em que eu poderia saber mais dele, do que ele viu, do que ele viveu. Como Letícia fez com seu amado Jan, posso eu também me lançar nesse caminho de desenterrar histórias aparentemente perdidas? Existem muitas arcas do tesouro por aí, repletas de relíquias sobre aqueles que vieram antes, e nós sabemos muito bem como chegar até elas.
Larissa Campos é jornalista, escritora e podcaster.