A certeza do perigo surgira – e ele estava indeciso, de olho arregalado, respirando com dificuldade, um espanto verdadeiro no rosto barbudo coberto de suor, o cabo do facão mal seguro entre os dois dedos úmidos. (RAMOS, 2013, p. 35).

Ilustração para Vidas Secas

Enquanto se aguarda a chegada do livro novo, pela Editora Corsário Satã, dos poetas Fabiano Calixto e Natália Agra, a gente se diverte com “A máquina de fazer nadas”, de Matheus Guménin Barreto. A descrição acima, da epígrafe, caberia em um filme que se passasse no Nordeste, especificamente no sertão: “Bacurau”, por exemplo. Mas não, é de “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos. A descrição realista integra o capítulo “O soldado amarelo” e apresenta um momento de tensão que se configura na hora de tomada de decisão. Vou até minha estante e decido: tomo o objeto nas mãos, vejo por dentro do livro aquele homem atrás dos bigodes. Não é Drummond, mas veste sete máscaras superpostas, uma sobre a outra:

Mundo imundo imundo mundo

mais asco dá o meu coração

(BARRETO, 2017, p. 36).

No século XIX, a seriedade de um homem se media pelo fio do bigode. O dístico acima se utiliza de um movimento parodístico a fim de promover a intertextualidade com Drummond. O efeito buscado talvez se assemelhe com aquilo que

Aqui – como em todos os pontos do presente estudo -, quando falo em “paródia”, não estou me referindo à imitação ridicularizadora das teorias e das definições padronizadas que se originam das teorias de humor do século XVIII. A importância coletiva da prática paródica sugere uma redefinição da paródia como uma repetição com distância crítica que permite a indicação irônica da diferença no próprio âmago da semelhança. (HUTCHEON, 1991, p. 47).

O diálogo estabelece pontos de contato e, no POEMA DAS SETE MÁSCARAS, o espelhamento sugerido contempla em parte essa relação, se não vejamos: o poema do “gauche” tem uma estrofe de quatro versos que Matheus transforma em mote a imagem reduzindo a dois versos, pela metade. O mineiro trata o “mundo mundo / vasto mundo” como algo grande, embora  “mais vasto é meu coração/”. Dobra o substantivo mundo e o adjetivo vasto, com o desfecho de que o coração é maior ainda. A crítica justifica a primeira fase de sua poesia como aquela em que o “Eu” é maior do que o mundo.

O poeta cuiabano Matheus Gumenin Barreto

O poeta cuiabano faz do primeiro verso agrupamento de contrários: cria o espelhamento em um único verso “Mundo imundo imundo mundo”: substantivo + adjetivo = adjetivo + substantivo; ocorre que o primeiro mundo se apresenta com inicial maiúscula, e o que se reflete no espelho (semiológico) é minúsculo, o que gera uma imperfeição imagética. “O plano de composição da arte e o plano de imanência da filosofia podem deslizar um no outro, a tal ponto que certas extensões de um sejam ocupadas por entidades do outro”. (DELEUZE; GATTARRRI, 1992, p. 81).

Observa-se no tom parodístico, a presença de uma espécie de chiste, “mais asco dá o meu coração”. A troca da repetição do “mundo”, pela de ”imundo” e a dupla aparição de “vasto” por “asco”, associadas a outra troca, do verbo de ligação “é” pelo verbo de ação “dá”, completam a o plano (filosófico) aludido por Deleuze/Guatarri. Em POEMA EXTREMO, o eu-lírico

Pega na mão a pedra

pega na mão a cadeira

pega na mão o pão

mesa escada copo d’água

pega

puxa pro lado

e descobre ali

a poesia

(BARRETO, 2017, p. 40).

A enumeração substantiva apresenta, anaforicamente, uma gradação em forma de elipse, uma vez que parte da pedra – elemento primitivo para a cadeira, manufaturado, o pão – alimento, produto; o quarto verso traz quatro substantivos: mesa (onde se come o pão), escada e copo d’água; volta o verbo, agora desacompanhado (pega), que leva a outro (puxa) que afasta com as mãos (elipsadas) algo para o lado e encontra a poesia (epifania).

Carlos Drumond de Andrade

Mas a poesia de Drummond tem outras faces. Em sua segunda fase, a de 1945, em que a crítica dispôs seu “Eu = mundo”, o poeta de maior destaque é “João Cabral de Melo Neto. Seu primeiro livro, ‘Pedra do Sono’, de 1942, é muriliano mas o segundo, ‘O Engenheiro’, de 1945, já está muito mais perto da contenção e da objetividade de Drummond”. (GULLAR, 1965, p. 81). A pedra do caminho de Drummond encontra a pedra do sono, de Cabral; a fusão das pedras conota a poética deste. No POEMA EXTREMO, de Matheus Guménin Barreto, havia não apenas uma pedra, mas também uma perda no meio do caminho; apenas da ordem das palavras, não das coisas. Havia lições nas pedras, como nas perdas.

“/Lições da pedra [de fora para dentro, / Cartilha muda], para quem soletrá-la/.” (NETO, p. 45) . Na passagem de Cabral, “A linguagem é descontínua, admite pausas e dispõe assimetricamente momentos fortes e fracos. As sílabas tônicas se casam irregularmente com as átonas”. (BOSI, 1977, p. 77). Há uma rítmica no fragmento acima, que se disfarça pela (pós) modernidade do discurso que enceta.

Percebe-se uma crescente influência fílmica, para muito além dos recortes, planos e linguagem telegráfica na poesia contemporânea. A paleta de cores traz expressividade e remete a outros significantes, como no POEMA AMARELO:

a faca tem de ser eloquente

e falar sabendo o porquê

 

e falar o discurso da chaga

ferida

na carne que a faca lê

(BARRETO, 2017, p. 86).

A sonoridade deste poema reforça a tradição da oralidade. A presença de paronomásias e aliterações faz da melopeia teia sonora (fricativa) com a provocação do /f/, cortante, que é reforçada pelo polissíndeto “e”; através de figuras de omissão emendam o discurso dando agilidade ao texto. A riqueza formal, a meu ver, se encontra na disposição métrica contrita que faz das duas estrofes uma única identificação sonora. A primeira, dois versos com nove sílabas fônicas, em que pese o segundo que apresenta uma tensão métrica na sexta sílaba.

Sendo assim, teríamos nove/nove e na estrofe seguinte nove/ duas/sete/. Nova incursão rítmica se faz presente se somarmos as duas sílabas do penúltimo verso com as sete do derradeiro teremos também nove, devido ao encontro vocálico o/o que está na mesma sílaba poética, mas se desacelerarmos a leitura, o que seria uma, passam a ser duas sílabas, somando nove (os dois versos).

A liberdade moderna de ritmos, a que responde uma mobilidade no arranjo da frase, é signo de que se descobriu e se quer conscientemente aplicar na prática do poema o princípio duplo da linguagem: sensorial, mas discursivo; finito, mas aberto; cíclico, mas  vectorial.(BOSI, 1977, p. 76).

REFERÊNCIAS

BARRETO, Matheus Guménin. A máquina de carregar nadas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2017.

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1977.

DELEUZE, Gilles. GUATARRI, Félix. O que é a filosofia. Tradução de Bento Prado Jr. E Alberto Alonso Munõz. 3. Ed. São Paulo: Editora 34, 2010.

GULLAR, Ferreira. Cultura posta em questão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. História. Teoria. Ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

NETO, João Cabral de Melo.

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Record, 2013.

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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