Do mergulho em perguntas, faltaram-lhe respostas. A revoada vem se juntar ao peso daquele pássaro e ao gôzo interrompido. Aline Bei, Letícia Bassit e Isabela Penov são atrizes, mas não vivem (apenas) de fazer cena, abraçam as palavras como companheiras de jornada. Cheia de graça, este eu-poético se apresenta:

Muito prazer, sou Maria

mais uma

nasci do pecado, como as demais

Dentre os versos sagrados, sou qualquer mulher

entre a lida e a fome

a caminho do mar… (p. 19).

 

Consta nos autos: desaparecida

tão morta quanto renascida

Maria que pede socorro (p. 21)

 

branca, preta, amarela, vermelha

Maria Arco- íris

Muito prazer. (p. 23).

Impossível escolher um poema para falar do livro. Prefiro o percurso da palavra que atravessa as páginas, o corpo do leitor. O livro é um corpo-ventre em turbilhão; e sangra palavras-tronco desde as trompas enquanto uma gota-seixo rola pelo seio liberto de sua poesia. Impossível o acalanto, o ninar: nina o poema.

(ela não tinha nome)

(ela não tinha voz nem ouvidos)

(ela não tinha olhos) (p. 27)

 

era uma vez a menina

que não tinha

mais

fim (p. 31).

Ela não era mais fim, mas no início tudo fazia sentido. Enquanto substantivo comum existia entre parêntesis na linguagem viva que lacera a carne. Fora dos parêntesis, pela força anafórica do verbo, continua minúscula e agora era meio, não fim, “quebrando o silêncio dos olhos caem íntimas lágrimas

[como sílabas –

mínimos sons-

escuta”. (p. 42).

O convite para dentro, a “navegar por uma lágrima”. (p.43). Pareço encontrar-me com outro “eu”, que não ela. “Laura nunca tinha demonstrado vontade de bater asas para outro lugar, ela era uma espécie de árvore”. (WERCHOWSKI, 2015, p. 122). Meia água, água-furtada, águas de um outro tempo que invento. “Nessa maldita mermita sem mistura ele remexe o que atura todo dia:” (p. 46). Verdade!

(enquanto isso, transeuntes mudos passam tranquilamente [mentira] do outro lado do muro. Estão indo, simples, a algum lugar [mentira] e não sabem muito bem o que está acontecendo [mentira] nem mesmo ouviram os gemidos [mentira], gritos, grunhidos, urros que do lado de cá do muro ecoam dentro do silêncio.) (p. 60).

O muro que se ergue nos separa, oprime, vigia. A gradação de Penov me atinge. Grito, grunhido, urro – não é crescente, ou decrescente, mas amplifica a dor. Do óvulo à folha, como diz a Onça, no prefácio (p. 14). Só o li depois para primeiro experimentar com meus olhos o prazer da leitura: “O subverso suprassumo do suplício. Um precipício página adentro. Um início após o fim”. (p. 65).

Isabela Penov, foto: editora Patuá

O eu-lírico aperta o gatilho e um rastilho de pólvora seca persegue o leitor. Acerta em cheio no coração-brinquedo de cada verso e deixa a cicatriz-balão orfã de todos os significados-mundo. Pareço concordar que “tem dias que a gente sente inveja de um pé de alface”. (p. 71). Alface crespa, com cabelos esbugalhados. Alface roxa, de inveja acentuada. Alface hidropônica, refém da água-viva para sobreviver à palavra-cárcere.

Do senso comum, do lugar algum se fica tranquilo. A poesia-coisa e seus incômodos-mênstruos lançam o fogo que aquece a palavra-vida. E aquilo que tu fostes, já não mais o é. A poesia-mundo de Isabela é feita de substantivos fortes, crus e macilentos. São receptáculos de ações difusas. Cada poema-coisa traz o espetáculo das ruas; a temporização da vida; a sutileza de um desencarne a mais. Mas os verbos, ah, os verbos

olha vê anda vive construiu

come mastiga colhe queima arde

lê entende escondem cabem

pensa procura merece aconteça salvar (p. 73)

vê enxerga vem crescer pulsa

 

enxerga

percebe renasce

escuta

entoa

retira

revolve

cerra abre range

sustenta

crer segurar

chegar (p. 74).

Isabela tem a garganta de palato quente e parece gritar no livro sempre um tom acima do suportável para esse mundo-dano que abandona as coisas em seu estado puro. Poesia com gosto de sangue coagulado. Nenhum verso será o mesmo depois de sangrada a palavra-vento. Lágrimas de dentro para fora, de fora para fora, de fora para dentro. Estou sentindo uma coisa boa, mas não adivinho o que seja. Talvez seja uma estrofe entalada na garganta. Preciso de um cuspe para dentro a ver se escorre feito coisa sem incomodar ao mundo aqui de fora.

REFERÊNCIAS

PENOV, Isabela. Aves Marias (ou a Revoada). São Paulo: Patuá, 2019.

WIERCHOWSKI, Letícia. Navegue a lágrima. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015.

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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