Daniela Maimoni de Figueiredo
Este ano está sendo atípico devido às mudanças necessárias para o enfrentamento da pandemia, mas também por conta dos recordes de temperaturas elevadas e de seca prolongada registrados em boa parte do Brasil, em especial em Mato Grosso. Estes extremos climáticos, associados ao aumento no desmatamento e aos cortes nos orçamentos públicos de prevenção aos incêndios e de fiscalização ambiental, levaram à ocorrência de milhares de focos de incêndio nos três biomas que ocorrem no Estado: Cerrado, Floresta Amazônica e Pantanal.
No entanto, foi no Pantanal que os incêndios foram mais devastadores e sem precedentes, pois dizimaram quase 1/3 do bioma, afetando a fauna, a flora e as comunidades ribeirinhas e indígenas que vivem nesta planície. As cenas de animais queimados ou agonizando causaram comoção dentro e fora do país. As elevadas temperaturas, a demora do governo em agir, o reduzido contingente de pessoas e de infraestrutura nas ações emergenciais e a dificuldade de acesso aos locais com mais focos de incêndio agravaram a situação. Mas, afinal, quais foram as causas desta tragédia ambiental?
Para entendermos as causas, primeiramente precisamos entender como funciona o Pantanal, que é a maior planície inundável do mundo, ocupando uma área de cerca de 179.300 km2 entre o Brasil (78%), Bolívia (18%) e Paraguai (4%), no Brasil está localizado entre os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. O Pantanal é um bioma único e considerado, até então, como um dos mais protegidos e conservados do planeta. Estas características levaram à sua proclamação em Patrimônio Nacional pela Constituição Brasileira de 1988 e Reserva da Biosfera e Patrimônio Natural da Humanidade pela Unesco em 2000. Além disto, desde 2011 tramita no Congresso Nacional a Lei do Pantanal, que poderá ser um importante instrumento de proteção deste bioma.
O principal rio do Pantanal é o Paraguai e seus maiores tributários são os rios Cuiabá, São Lourenço, Sepotuba, Jauru, Cabaçal, Taquari, Miranda, entre outros. Todos nascem no entorno do Pantanal, nas partes mais elevadas (chapadas e serras), e fluem em direção à planície. A quantidade de chuva no planalto é muito maior do que no Pantanal, com isto, as inundações ocorrem principalmente devido à água das chuvas do planalto, transportada pelos rios. Na planície, os rios transbordam, inundando campos e se conectando com lagoas, chamadas de baias. Na época de seca, grande parte do Pantanal, antes inundada, passa a ser um ambiente terrestre, outra parte permanece com água o ano todo. Esta variação anual do nível da água é chamada de pulso de inundação, principal força que mantém a integridade ambiental e a biodiversidade, que fertiliza naturalmente a planície e que sustenta as atividades econômicas desenvolvidas no Pantanal.
Os principais impactos ambientais que vem ameaçando essa planície de inundação tem origem, principalmente, no planalto, decorrentes das atividades do agronegócio nas partes altas (agricultura de grãos, cana-de-açucar e algodão e pecuária em larga escala), que causam erosão no solo e aumento de sedimentos, fertilizantes e agrotóxicos que são levados pelos rios até a planície; das grandes cidades, como Cuiabá e Várzea Grande, que geram esgoto e lixo também tranportados pelos rios até o Pantanal; e das cerca de 48 usinas hidrelétricas construídas nos rios tributários, que são barreiras que impedem a migração dos peixes no período da piracema.
No Pantanal, uma das principais atividades econômicas, além do ecoturismo e da pesca, é a pecuária tradicional, que vem desde o século XVIII se desenvolvendo adaptada ao pulso de inundação, usando as pastagens naturais e, assim, causando pouca alteração ambiental. No entanto, por várias razões, desde a década de 1990 esta atividade encontra-se em decadência, levando muitos pecuaristas a investir também no turismo e/ou a tentar implantar um modelo de pecuária como ocorre no planalto, pouco adaptada às condições locais e causa de impactos ambientais. Isto tem levado, de um lado, ao abandono de áreas de pastagens e ao plantio de pastagens artificiais, onde o fogo é usado para controle ou para auxiliar na abertura de novas áreas desmatadas. Estas alterações causaram tanto a diminuição de áreas inundadas quanto o aumento na proliferação de plantas nativas invasoras de pastagens, favorecendo o acúmulo de matéria orgânica em alguns locais. Somados a isto, houve uma redução no volume de chuvas nos dois últimos anos, tanto no planalto como no Pantanal, que em alguns locais foi 40% menor do que a média histórica. As projeções e simulações do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) estimaram a ocorrência de impactos consideráveis das mudanças climáticas sobre o Pantanal, o que já vinha sendo percebido pelas comunidades ribeirinhas.
Esses fatores, juntamente com drástica redução nos orçamentos públicos de prevenção aos incêndios (- 60%) e de fiscalização ambiental, foram faíscas no barril de pólvora para que ocorressem os trágicos incêndios no Pantanal este ano. Bastaram dois anos de redução nas chuvas e a conjunção dos fatores acima para que a tragédia ocorresse.
Os locais de origem dos incêndios, a identificação dos responsáveis e a avaliação dos impactos ainda estão em fase de análise por agentes e polícia ambientais e por pesquisadores. Muita especulação surgiu, mas algumas certezas existem: a maioria dos focos de incêndio começou em fazendas de criação de gado e as mudanças climáticas foram favoráveis para que o fogo se propagasse por vastas áreas.
Diversos representantes de segmentos sociais que dependem do Pantanal para sua atividade econômica e sobrevivência, como pecuaristas tradicionais e agentes do turismo, juntamente com o governo, universidades públicas e outras instituições de pesquisa, como a Embrapa Pantanal, estão discutindo essas questões e buscando formas de prevenir os incêndios nos próximos anos, que deverão manter a tendência de secas extremas e menor quantidade de chuva, bem como recuperar algumas áreas críticas afetadas. O conhecimento científico será fundamental para apontar caminhos e contribuir com a tomada de decisão e com a busca de soluções.
Tudo indica que um dos maiores obstáculos aos futuros projetos de proteção do Pantanal será a alocação de verbas públicas, uma vez que parte do governo federal e estadual minimiza o problema, aponta causas sem relação com os fatos ou apenas uma única causa ou soluções questionáveis (boi bombeiro, por exemplo) e/ou apoia a ocupação do Pantanal por uma pecuária não-tradicional, pouco sustentável e de elevado impacto ambiental.
O Pantanal é um bioma único no mundo, extremamente dinâmico e com elevada biodiversidade e heterogeneidade de paisagens, que depende do pulso de inundação, fundamental para manter a integridade ambiental da planície. Alterar estas condições com a adoção de atividades econômicas insustentáveis, ao invés de fomentar o ecoturismo e a pecuária tradicional, causará enormes impactos que, aliados às mudanças climáticas e aos impactos contínuos já existentes e provindos do planalto, colocarão em risco a existência deste bioma. Cabe à sociedade participar, decidir e pressionar para que este patrimônio brasileiro e de toda humanidade seja protegido para as atuais e futuras gerações.
Daniela Maimoni de Figueiredo. Bióloga. Professora do Mestrado em Recursos Hídricos da UFMT