Morei em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, no ano de 1996, por seis meses. Foi o período em que dei vazão à necessidade de escrever um romance. Digo necessidade pela maneira imponderável pela qual decidi fazê-lo. Não se nasce escritor, mesmo que a vontade e o desejo se sobreponham às reais dificuldades que a empreitada impõe. Inscrevi-me no FUMPROARTE – Fundo Municipal que cataloga as produções locais e sobre o qual se aplicava um critério seletivo para a liberação e rígida fiscalização da contrapartida financeira. Não vingou.

Imagem de Karin Henseler por Pixabay

De volta ao Mato Grosso ao final daquele ano retomei os estudos universitários e decidi que a arte seria o meu plano B, investindo em minha formação educacional. De lá para cá assumi a docência como campo de batalha e o universo artístico é meu cabedal, onde busco nutrir minha didática e diálogo com o mundo exterior à sala de aula. Ler e escrever são atitudes ordinárias com as quais convivo já há algum tempo. E os romances, meu passatempo preferido.

Não escrevo resenhas, não gosto de prefácios, evito comparações entre obras, autores, estilos e épocas. Cada livro tem seu tempo e de repente chega a hora de se ler este, aquele passa a frente, surge um inesperado que assume a ponta. “O Arquipélago de Dâmocles” foi um desses. Danilo Zanirato, como eu, não é um escritor profissional, é médico. Eu o conheço do seleto grupo que ocupava as praças declamando poemas; temos amigos em comum.

Na dedicatória que me escreve ele apresenta a entidade, o livro, com um professor a nos mostrar novos caminhos. E afirma ser o livro, qualquer livro, penso, como um instrumento de combate à mesquinhez. O primeiro capítulo já me lança à infância, no Paraná, e me leva a um dos temas preferidos ao longo da vida: a morte de Getúlio Vargas. Não creio em suicídio daquele homem.

O nascimento do último filho de Ernesto Damázio ocorre no primeiro de abril de 1964 e me traz à lembrança o jogo de bets, o mercúrio cromo, o Neocid contra piolhões, o chá de alho para as gripes, ataques de marimbondos, crianças que desligavam os disjuntores das casas e saíam correndo, as músicas de Orlando Silva e Nelson Gonçalves. Crianças que ajudavam nos serviços da casa: “tirávamos a mesa após as refeições; um lavava a louça, outro enxugava, e um terceiro guardava; varríamos o chão, levávamos o lixo pra fora etc” (ZANIRATO, 2020, p. 25).

E seguem as rememorações: a guerra de mamonas, a extração de amígdalas, o jogo de xadrez; o respeito sagrado às sextas-feiras santas, imposto pela avó materna, adepta do Antigo Testamento. E depois as poluções noturnas, a pasta de dente nos cabelos quando em viagem com adolescentes, o maço de cigarros nos bolsos da camisa, em destaque, a dedicação aos estudos e pesquisa com a Enciclopédia Barsa; ganhamos uma usada, de minha madrinha. O escovão, instrumento que aprendi a pilotar, mesmo com aquele peso.

Quatro irmãos escarrados pelo determinismo biológico que dá suporte à narrativa. Um que viraria médico, outro padre, um terceiro militar e o artista. Uma mãe que perde dois, antes de sucumbir. E uma sequência de tragédias que mergulham a família em uma distensão típica de grandes aventuras terrenas. A tragédia do protagonista estava por vir e começa se desenhar quando se anuncia uma eutanásia canina com a injeção de cloreto de potássio. “O coração para de bater, numa diástole” (idem, p. 166).

Imagem de Peggy und Marco Lachmann-Anke por Pixabay

Em sonho, o padre-ateu repercute por três páginas um encontro com a sua própria consciência da qual emergem reflexões profundas.

– Meu amigo, o amor é belo em todas as suas formas. Mas o amor de uma mulher não foi destinado para você.

– Mas Deus, muitas vezes, deixa desvalido e desprovido o homem que deu sua última camisa e provê abundância àquele que nega sequer uma moeda, um pedaço de pão aos que têm fome (idem, p. 178).

O livro é um reencontro com os grandes temas. Não há como compará-lo a romances contemporâneos de linha experimental, nem aos hibridismos tão em voga neste momento. Os clássicos que sub-repticiamente se apresentam na escrita aludem a Jorge Amado, Dostoievski e Saramago; trazem ao leitor pequenas intertextualidades com Carlos Drummond de Andrade e Vinícius de Moraes, embora prescindam de outros referentes para fazer o que um romancista deve fazer por seus leitores: contar uma boa história.

“O Arquipélago de Dâmocles” escapa às distopias do momento. Danilo Zanirato traz o fio da espada que corta o adereço da palavra sem que o sangramento se aviste a olho nu. Os capítulos nomeados tradicionalmente, o ajuste sequencial que facilita a vida do leitor e algumas ligações semânticas que presentificam os fios condutores trazem a unidade para a obra e fazem com que se possa chamar a este romance de tradicional, sem que sobre tal definição recaia qualquer ranço de conservadorismo estético, o que ainda assim seria melhor do que modismo passageiro.

Imagem de Tumisu por Pixabay

A ilha do Seminário, Gisele, Angelina, Celina e Lídia são algumas das ilhas que compõem o arquipélago. Talvez tenha sido na Barsa que eu tenha lido pela primeira vez o que era uma ilha, pedaço de terra cercado de água por todos os lados. Danilo é aquele médico que gosta de poesia, de leitura, de romance. Sempre me lembro de sua presença e quando ele pega o microfone para falar algum poema, em noites de sarau, espero que surja o que a mim é emblemático em seu repertório: “- Moço, tem pão velho?”

 

REFERÊNCIAS

ZANIRATO, Danilo. O Arquipélago de Dâmocles. São Paulo: Baraúna, 2020.

 

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

Comentário

  1. Quantas lembranças da infância me rodearam durante essa deliciosa leitura, soltei muita pipa (pandorga), pulei muitos muros e me joguei de telhados, mas as guerras de bolinhas de sinamomo eram acontecimentos épicos, voltei no tempo.

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