Morei em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, no ano de 1996, por seis meses. Foi o período em que dei vazão à necessidade de escrever um romance. Digo necessidade pela maneira imponderável pela qual decidi fazê-lo. Não se nasce escritor, mesmo que a vontade e o desejo se sobreponham às reais dificuldades que a empreitada impõe. Inscrevi-me no FUMPROARTE – Fundo Municipal que cataloga as produções locais e sobre o qual se aplicava um critério seletivo para a liberação e rígida fiscalização da contrapartida financeira. Não vingou.
De volta ao Mato Grosso ao final daquele ano retomei os estudos universitários e decidi que a arte seria o meu plano B, investindo em minha formação educacional. De lá para cá assumi a docência como campo de batalha e o universo artístico é meu cabedal, onde busco nutrir minha didática e diálogo com o mundo exterior à sala de aula. Ler e escrever são atitudes ordinárias com as quais convivo já há algum tempo. E os romances, meu passatempo preferido.
Não escrevo resenhas, não gosto de prefácios, evito comparações entre obras, autores, estilos e épocas. Cada livro tem seu tempo e de repente chega a hora de se ler este, aquele passa a frente, surge um inesperado que assume a ponta. “O Arquipélago de Dâmocles” foi um desses. Danilo Zanirato, como eu, não é um escritor profissional, é médico. Eu o conheço do seleto grupo que ocupava as praças declamando poemas; temos amigos em comum.
O nascimento do último filho de Ernesto Damázio ocorre no primeiro de abril de 1964 e me traz à lembrança o jogo de bets, o mercúrio cromo, o Neocid contra piolhões, o chá de alho para as gripes, ataques de marimbondos, crianças que desligavam os disjuntores das casas e saíam correndo, as músicas de Orlando Silva e Nelson Gonçalves. Crianças que ajudavam nos serviços da casa: “tirávamos a mesa após as refeições; um lavava a louça, outro enxugava, e um terceiro guardava; varríamos o chão, levávamos o lixo pra fora etc” (ZANIRATO, 2020, p. 25).
E seguem as rememorações: a guerra de mamonas, a extração de amígdalas, o jogo de xadrez; o respeito sagrado às sextas-feiras santas, imposto pela avó materna, adepta do Antigo Testamento. E depois as poluções noturnas, a pasta de dente nos cabelos quando em viagem com adolescentes, o maço de cigarros nos bolsos da camisa, em destaque, a dedicação aos estudos e pesquisa com a Enciclopédia Barsa; ganhamos uma usada, de minha madrinha. O escovão, instrumento que aprendi a pilotar, mesmo com aquele peso.
Quatro irmãos escarrados pelo determinismo biológico que dá suporte à narrativa. Um que viraria médico, outro padre, um terceiro militar e o artista. Uma mãe que perde dois, antes de sucumbir. E uma sequência de tragédias que mergulham a família em uma distensão típica de grandes aventuras terrenas. A tragédia do protagonista estava por vir e começa se desenhar quando se anuncia uma eutanásia canina com a injeção de cloreto de potássio. “O coração para de bater, numa diástole” (idem, p. 166).
Em sonho, o padre-ateu repercute por três páginas um encontro com a sua própria consciência da qual emergem reflexões profundas.
– Meu amigo, o amor é belo em todas as suas formas. Mas o amor de uma mulher não foi destinado para você.
– Mas Deus, muitas vezes, deixa desvalido e desprovido o homem que deu sua última camisa e provê abundância àquele que nega sequer uma moeda, um pedaço de pão aos que têm fome (idem, p. 178).
O livro é um reencontro com os grandes temas. Não há como compará-lo a romances contemporâneos de linha experimental, nem aos hibridismos tão em voga neste momento. Os clássicos que sub-repticiamente se apresentam na escrita aludem a Jorge Amado, Dostoievski e Saramago; trazem ao leitor pequenas intertextualidades com Carlos Drummond de Andrade e Vinícius de Moraes, embora prescindam de outros referentes para fazer o que um romancista deve fazer por seus leitores: contar uma boa história.
“O Arquipélago de Dâmocles” escapa às distopias do momento. Danilo Zanirato traz o fio da espada que corta o adereço da palavra sem que o sangramento se aviste a olho nu. Os capítulos nomeados tradicionalmente, o ajuste sequencial que facilita a vida do leitor e algumas ligações semânticas que presentificam os fios condutores trazem a unidade para a obra e fazem com que se possa chamar a este romance de tradicional, sem que sobre tal definição recaia qualquer ranço de conservadorismo estético, o que ainda assim seria melhor do que modismo passageiro.
A ilha do Seminário, Gisele, Angelina, Celina e Lídia são algumas das ilhas que compõem o arquipélago. Talvez tenha sido na Barsa que eu tenha lido pela primeira vez o que era uma ilha, pedaço de terra cercado de água por todos os lados. Danilo é aquele médico que gosta de poesia, de leitura, de romance. Sempre me lembro de sua presença e quando ele pega o microfone para falar algum poema, em noites de sarau, espero que surja o que a mim é emblemático em seu repertório: “- Moço, tem pão velho?”
REFERÊNCIAS
ZANIRATO, Danilo. O Arquipélago de Dâmocles. São Paulo: Baraúna, 2020.
Quantas lembranças da infância me rodearam durante essa deliciosa leitura, soltei muita pipa (pandorga), pulei muitos muros e me joguei de telhados, mas as guerras de bolinhas de sinamomo eram acontecimentos épicos, voltei no tempo.