Ivy Menon

Costumávamos armar a arapuca, quase no fim da tarde. No meio da mata atlântica. Éramos quatro irmãos com idade para caçar o próprio alimento. Eu, a mais velha, tinha nove anos. Sabíamos do que precisávamos: proteína animal. Carne. Bem firme, a arapuca feita de varinhas trançadas de bambu era armada. Do musgo rente ao chão, à peroba ou à figueira de mais de duas dezenas de metros de altura, tudo mata cerrada. Nossa fome sempre se sobrepunha.

Assim que jogávamos o milho sobre a vareta que acionaria a armadilha e faria a arapuca cair e prender os passarinhos, nos escondíamos. Respiração controlada. Ouvidos atentos aos ruídos. Conhecíamos todos os sons da mata. O pisar do nhambu era muito diferente do rastejar de uma cobra, ou mesmo de uma inquieta saracura. Nosso maior sonho: um jacu! Regra básica: soltar os pássaros pequenos, que não serviam para alimentação.

Para brincar, prendíamos vaga-lumes no vidro vazio de cachaça entornada pelo pai durante a semana. E atávamos borboletas em linhas de costura que a mãe usava para remendar nossas roupas puídas. A vida brilhava à noite em lampiões vivos. Corcéis alados, de dia, feitos de fragilidades coloridas. A fantasia vestida de borboletas e pirilampos nos fazia esquecer as faltas. E nos eximia da culpa.

….

Depois de aposentada, escolhi voltar para o mato. Interior do interior. E vivo a mil por hora, por conta de ser avó de SETE, dos quais, dois são filhos! Todos, adolescentes ou quase. Minha rotina é feita de estrada de terra e pó que encobre o carro. Borboletas e passarinhos. Lagartos, cobras, tatus, cotias, porcos-espinhos! Me flagro a me perguntar, quando vejo a saracura que corre cortando a estrada: “como eu tinha coragem de matar e comer um bichinho tão lindo?”! E me comovo com a revoada das borboletas e vaga-lumes. Saciada, posso me deleitar com a beleza que me cerca.

Porém, prazerosa mesmo é a reação dos netos, quando estou distraída e enfio o pé no acelerador: “não atropela a borboleta, vovó!”. Ou “vovó, freia pra não matar a rolinha!” “Pelamordedeus, vovó, espera o lagarto passar!”. “Desvia da cobra!”. “Olha a caranguejeira!”. “Ufffa, foi por pouco!”. Às vezes: “será que ela morreu, vovó???”, quando uma andorinha dá um voo rasante, por baixo do carro!

Já salvei “cotio”, juntei besouros para levar, de baciada, para longe da varanda. Arranquei passarinho da boca do gato. Chorei pela coruja que morreu ao bater na porta de vidro (jurei trocar todas as portas e janelas de vidro da casa. Não troquei). Esperei sabiá desmaiado de tanto se bater, dentro da minha casa, se recuperar para soltá-lo e me emocionar com o voo. Já orei para que as cobras não passassem para o lado de cá! E alimento jacus, quero-queros e biguás que circulam barulhentos e felizes pelo meu quintal. Há poesia por todo canto, por aqui.

Não me tornei vegetariana. Animal político? Sim. De esquerda e… selvagem! Por isso, quando eles não estão comigo, faço questão de deixar ecoar, dentro de mim, os gritos de medo, deles, de que a “vovó porreta-maluquinha” atropele algum ser vivo. Me sobram os ácaros para matar, mais nada! Haja!

A vida é bela! A saciedade muda o foco. Penso nisso, entre a alegria de ver meus filhos e netos livres da fome e o choro de lembrar que, no Brasil, ainda há milhões de crianças que sonham com chuva de pão com mortadela, o maná dos excluídos.

 

Ivy Menon, 62 anos, natural de Cornélio Procópio-Pr, escreve poesia, crônicas e contos, os quais publica nas redes sociais e e revistas eletrônicas. É bacharel em Direito, com pós em Filosofia, além de jornalista e teóloga. Gosta, de verdade, de ser vovó! Aposentada, mora em Rio Negro-Pr. Uma das finalistas (Poesia) no Prêmio Off Flip em 2018 e 2019

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