A vontade de ler este livro veio assim que me deparei com o título. Mas é tanta coisa para ler que a gente vai deixando, até a hora em que decidi ser a hora, a boa hora. A hora então vem, cheia de si. Logo de cara fui me afeiçoando com a narrativa e me lembrei de Gianni Rodari com suas fábulas ao contrário, como também de Lygia Bojunga, com a bolsa amarelada. A referência à Edith me deixa curioso para saber como foi sua ajuda.

Penso que “se deus me chamar não vou” pode ser lido, estudado e debatido em uma roda de escrita criativa, ao modelo de oficina em que todos põem o seu reparo à escrita dos demais. E me parece que alguns exercícios são sugeridos por Carmelina, quero dizer, Carmem, ou seria Maria Carmem?

Mariana Salomão Carrara

Não sei em que momentos encerrar capítulos. Decidi que cada vez que eu precisar sair do computador para tomar banho, comer ou ir para a escola, vou encerrar um capítulo. Assim os capítulos do livro vão ficar parecidos com os capítulos da vida de verdade. (CARRARA, 2019, p. 13).

Uma protagonista que narra sua história, escrita quando tinha apenas onze anos de idade. Lembro de professoras das séries iniciais que receitavam o uso de vírgulas a cada pausa para respiração. Fico imaginando uma criança asmática, como pontuaria seus textos. E os parágrafos, como defini-los? Quando for mudar de assunto é outro parágrafo, simples assim. Mas e a redação do ENEM cobra no mínimo três parágrafos: introdução, desenvolvimento e conclusão e o assunto não é o mesmo?

Percebi que já sei encerrar os capítulos. Eles encerram sozinhos, eles acham a hora deles. Desse jeito, são os capítulos que estão controlando as minhas coisinhas diárias, tipo xixi, banho, comida. Só não controlam a escola, isso só quando eu for escritora e o livro for mais importante que a escola. (idem, p. 24).

Viver para escrever, ou escrever para se manter vivo? A escola serve para o que mesmo? Tenho alguns amigos que largariam tudo se pudessem viver de literatura, eu acho que não. Gosto de minha profissão de educador e aprendi que nada é para sempre. Mas sei que a escola precisa mudar muito, tornar os conteúdos significativos, e que está em constantes alterações. Enquanto isso, pode ensinar algumas coisas legais, até mesmo no quesito de leitura e escrita. “Por isso que vai ser legal quando eu for escritora, dá tempo de selecionar as palavras”. (idem, p. 39).

A literatura é uma arte ingrata, sobretudo no contemporâneo, diante dessa ditadura da imagem, em que o cinema, a internet e a proliferação de novas tecnologias têm superado o interesse pelos livros – até mesmo os digitais. Precisava de algo novo, realmente inovador para que a gente pudesse mudar essa realidade. Mas será preciso mudá-la, ou apenas alguns ajustes resolveriam o problema?

Também fiquei querendo que livros fossem igual sanfona. Que tudo que eu escrevesse ficasse sanfonando na calçada pras pessoas ouvirem, em vez de lerem, já que ninguém sai lendo muito por aí. Daí as páginas abriam e fechavam no meu braço e as palavras iam saindo e se eu escrevesse muito muito muito bem igual o Leonardo toca, as pessoas acabariam dançando. (idem, p. 63).

A autora me recomenda na dedicatória que a Maria Carmem seja boa companhia para estes tempos sombrios. Apesar de cética, descrente de muitas coisas, revela sua inquietação para a figura de Cristo crucificado a quem recorre em momento de tristeza. “Levei vários dias um pouquinho do meu lanche pra ele. Eu deixava embaixo da cruz, e na saída ia olhar o lanche continuava ali, e eu estava sempre com fome e acabava comendo”. (idem, p. 69).

Comer da própria oferenda. Essa irrequieta postura infantilóide (ela tem apenas onze anos, apesar de ser grande!) não sei se não gostava da escola, ou o ambiente, por ser hostil à sua pessoa despertava esse turbilhão. Não gostava das aulas de educação física. “Por quê? Outro dia mesmo a professora tinha dado uma aula inteira só sobre brincadeiras antigas, ela chamou de clássicas. A mais longa delas foi pula-cerca”. (p. 116).

O surgimento de Leo (os pais pulando outra espécie de cerca), a revelação feita pela mãe de que ela e o pai estavam namorando aquele rapaz, foi outro choque. E a narrativa vai se problematizando com situações inusitadas como fossem aqueles exercícios de escrita criativa a que me referi n o início da crônica.

Pronto, já fiz o suspensezinho que a professora me ensinou, e que na verdade foi um suspense real que durou cerca de três minutos até o Leo começar a enfiar na mochila também coisas do meu pai e da minha mãe, e depois me mandou buscar as minhas, e disse vamos à praia. (idem, p. 148).

A rejeição no ambiente escolar aumentou. Parecia circular pela sala de aula o “babado” de que em sua casa pai, mãe e sabe-se lá quem mais viviam em promiscuidade constante. Mas Leo, cada vez mais ganhava espaço na vida da família, o que não quer dizer que não houvesse conflitos. “Família é um vaso que quebra até por excesso de flores”. (idem, p. 87).

E de mais a mais, a escrita literária não tem compromisso algum com a realidade das coisas. Foi Leo quem deu esse empurrãozinho para que o livro encontrasse seu destino, ao invés de ir para a lixeira do computador. Ele abriu os olhos de Carmem, de Maria Carmem. “Falou que eu também podia colocar verdades no meio se eu quisesse, ele não ligava. Meus pais estavam ouvindo e não disseram nada. Meus pais não gostam de comer histórias se elas ainda não estão mortas”. (idem, p. 150).

Nada disso acalmaria aquele coraçãozinho opresso que não encontrava um final para aquela história. “Eu não sabia terminar, esperava acontecer alguma coisa incrível na minha vida e isso poria um fim em tudo, mas até então o mais incrível era a rosa de compasso de Carlos. Lembrei o que o Leo falou sobre ficção. Eu podia inventar”. (idem, p. 155).

Gosto da imagem dela pensando que poderia namorar a moça de quinze anos, sua vizinha, aquela que não suportava a ideia de fazer sexo, e reforçava sua fala, com uma maçã, representação do pecado original, à mão. Se não subiu aos céus segurando balões recheados de gás hélio, também não se jogou pela janela com o guarda-chuvas aberto. A literatura sempre vence, ao menos enquanto houver leitores para desafiar o código linguístico. Não adianta recusar o chamado, a hora que menos se espera, Ele (ou seria ela?) vem!

REFERÊNCIA

CARRARA, Mariana Salomão. Se deus me chamar não vou. São Paulo: Editora NOS, 2019.

 

 

 

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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