Esses dias li um texto que fala do possível primeiro psicoterapeuta da literatura, o Virgílio, poeta que ajudou Dante em Divina Comédia nos momentos em que sua fé fraquejou.
Recebi uma chamada, aceitei, fui em direção e o passageiro embarcou. A primeira impressão que tive é que ele estava bêbado. Puta merda. Não gosto de bêbado, e não sei se sei lidar com quem bebeu demais. Esse tipo de gente estraga tudo, principalmente com seu mau humor da ressaca. Não tem amor por ninguém. Na verdade só quem lida com bêbado é bêbado. Nem dono de bar suporta. Não tem suporte. É uma desgraça. Eu bebo “socialmente” e não tenho paciência. Por isso que até hoje não abri um bar. Por mim fechava todos os bares e farmácias pra me vingar deles e não poderem comprar remédio de dor de cabeça do dia seguinte. Vomitar no carro pode? Não, filho de uma boa Kenga. Em plena pandemia essa coisa ruim vai querer tirar a máscara, vai babar no meu olho e ficar falando de seus problemas e suas posições políticas infames. Vai chorar, falar alto, gesticular demais. Fora os lampejos de catatonice. O pior, vai querer ser meu amigo, forçar uma intimidade que nem meus amigos têm. O pior que eu não sei se ele matou alguém e agora está passeando sem nem lembrar que é um assassino. O pior que esse tipo de gente ferra com nossa liberdade de beber pra comemorar. Ainda bem que nunca fiquei assim. Tempo de pandemia comemorar o quê? Desgraceira. Não sei se esse bosta foi violento em casa, maltratou os filhos, a mulher, os pais, sei lá. Maldita hora que não estudei pra concurso público e assim trabalhar para o resto da vida, dois turnos, aguentando mandos e desmandos, assédio e outras mazelas de chefes. Ao menos ganharia 10 vezes mais do que ganho como motorista. Até com a máscara estou sentindo o bafo dessa praga. Esse cabra deveria estar atravessando o inferno de Dante ao seu lado, não no meu. Virgílio eu tiraria da história só pra ver ninguém ser salvo dos dogmas religiosos. Só pra ver esse cachaceiro viralizar nas labaredas mais terríveis. Ganhar 13 reais pra dirigir quase 15 km. Motorista de aplicativo nasceu para perder e se Jesus voltasse ele me aceitaria. Eu já aceitei faz horas, só Deus pra resolver o que o homem não resolve. Mas eu não sou burro, e percebi que motorista de aplicativo não é uma profissão, é apenas um ato desesperado pra ganhar 60 reais líquidos por dia (subtraído óleo, gasolina, multas, motor, câmbio, etc.), pagar mil de aluguel e o resto de compra de mercado. O resto das contas a gente joga nas costas de professores de escola pública e nas dos enfermeiros que também fazem o mesmo. Vomita não, desgraçado, engole quieto que assim você não causa confusão. Artista nem se fala, esse é pior que bêbado, segue a carta do capitalista, quanto mais fama maior o cachê, a obra mesmo é o que menos importa. E assim alguns pensam como funciona. Caceta, esse cara não para de falar. Bravejar, ironizar, chorar, o carro mesmo parado está balançando. Aplicativo é carona remunerada, ida e volta, nada mais. Não é um emprego. É uma ideia maravilhosa de mobilidade nas cidades mais lindas e justas. Isso é uma empresa de capital aberto que se falir ninguém paga a conta. Não dá lucro, mas tem bilhões pra investir no “que” ou em quem quiser. Soluço. Odeio soluço, esse bêbado tá soluçando. Começou a falar que é nazista pra chamar atenção no seu discurso. E bêbado tem discurso? Não sei, eu não sei o que fazer. Acho que levei uma multa, 300 reais a menos no orçamento. PQP. Avenida grande, sem quebra molas e buracos. Até que enfim uma boa notícia.
Chegamos, o senhor pagou no cartão, boa tarde.
Senhor?
Não acredito… Ele dormiu.
ACORDA, senhor. Senhor. Ô rapaz. ACORDA.
A
CORDA.
E de brinde: