E terminou a fala como a iniciou. Discorreu acerca de aspectos da escrita. A regra se impunha à assistência de maneira rígida e o tempo todo foi observado por agentes infiltrados que se impunham pela presença física, mais do que intelectual, no ambiente. E trazia prontas as respostas para as questões que surgiriam. Quando o microfone foi aberto buscava ordenamento para o que havia preparado. Correu os olhos para a esquerda, quando veio do fundo a primeira participação. Um rapaz franzino, de óculos que ostentavam miopia crescente.

– Bom dia, meu nome é João, sou professor de filosofia. O senhor falou da relação da escrita com a exposição de motivos, e de como se articulam para a produção de sentidos. Em que medida se atribui ao intelecto essa função – e encerrou a pergunta ajeitando o objeto que insistia em escorregar-lhe pelo nariz.

O palestrante ficou na dúvida entre duas das respostas e, enquanto enrolava para responder, decidiu-se por “Pense como um artista”, de onde extraiu que:

“Shakespeare foi um ator que se tornou dramaturgo. Os Rolling Stones eram uma banda cover de “rhythm and blues” até que Mick Jagger e Keith Richards começaram a compor suas próprias canções. Leonardo da Vinci divulgava seu ofício como projetista de armamentos, e assim por diante. A lista de planos B é longa e ilustre. Além de instrutiva” (GOMPERTZ, 2015, p. 44).

Houve algum estranhamento na plateia, mas, como é natural no ambiente acadêmico, muitas vezes diante do argumento de autoridade as pessoas se fecham; eis o que aconteceu.

– Bom dia. Sou Janete do Correio Municipal. Minha pergunta é a respeito do envolvimento comunitário na produção de sentido a que o senhor se referiu. Não seria um bem público a produção literária e cultural, para evitar inclusive que a referida produção tenha uma abrangência maior e se amplie a questão do pertencimento – indagou!

Ressuscitou Carlos Lacerda, trazendo-o do ostracismo a que o episódio de Toneleros impôs e sem titubear vociferou:

“A abolição da escravatura, que tem aparecido como obra benfazeja da princesa Isabel, representa na verdade, de um lado, a satisfação dos interesses imperialistas que necessitavam empregar seus capitais no Brasil, e viam no trabalho escravo um obstáculo à industrialização do país. E de outro lado, representa o remate em câmara lenta de uma luta que era dos próprios escravos, insurgidos contra os senhores, e organizados em quilombos, em grupos, tomando armas para lutar pela sua liberdade” (LACERDA, 1998, p. 9).

O par de dois que portava óculos de sol, no ambiente fechado, se desencontrava sem saber o que fazer. E veio outra, agora da primeira fila, a soltar a voz:

– Melissa Fernandes, baiana de nascimento, estudante de sociologia da Federal. O senhor não considera inconsistente o discurso de igualdade racial que se veicula na oficialidade – finaliza apontando para a dupla.

– “O discurso inconsciente tem uma ordem, mas a censura impede que ela se manifeste. O discurso público tem uma ordem, mas o inconsciente o sabota, infiltrando-se nele. O trabalho do lapso recusa a ordem que estrutura os dois discursos antagônicos, mina sua gramaticalidade, e produz um discurso híbrido, cuja ordem é anárquica, e cuja gramática se constitui a partir da dissolução da gramática pública.” (ROUANET, 2008, P. 35) – e jogou para o lado as anotações.

Não parecia surgirem outros questionamentos diante dessa fala. Mas sempre há um desavisado que não se contenta. O rapaz barbudo e de camiseta branca resolve se manifestar:

– Sou poeta. O senhor não considera arbitrária a escrita na produção de sentido – seus olhos cuspiam fogo, olhando para Cosme e Damião.

“O poeta se desnuda/ Sua maquiagem/ desaparece/ Em silêncio/ Muda” (MARINS, 1990, p. 29).

O diretor do campus reforçava o agradecimento diante do retrato pintado com palavras naquela manhã, ao que o palestrante replica:

– O trabalho do escritor parece com o do fotógrafo, em muitos aspectos.

Alguns aplausos dos remanescentes da balbúrdia sufocaram o silêncio enquanto se apagava a câmara escura da significação. O sol ardia e os homens infiltrados faziam jus aos óculos de sol enquanto colocavam suas máscaras, como todo cidadão de bem.

 

REFERÊNCIAS

GOMPERTZ, Will. Pense como um artista. Rio de Janeiro: Zahar, 2015.

LACERDA, Carlos. O Quilombo de Manuel Congo. 2 ed. Rio de Janeiro: Lacerda ed., 1998.

MARIN, Álvaro. Lobisomem às avessas. Rio de Janeiro: A Taba, 1990.

ROUANET, Sérgio Paulo. Édipo e o Anjo. Itinerários freudianos em Walter Benjamim. 3 ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2008.

Compartilhe!
Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

Deixe um comentário

Please enter your comment!
Please enter your name here