Toda memória não cabe no coração

Não sei descrever o sentimento que me invadiu naquela tarde fria, descendo as curvas da avenida, o passo lento e solitário, distraída, olhando para os meus pés calçados com as botas pretas, o vento Sul fustigando o rosto descoberto, nuvens esparsas navegando no céu muito pálido, uma paisagem desconfortável dentro de si mesma, porque frio não combina com Cuiabá, com sua temperatura sempre elevada sol abrasador constante, azul e amarelo, cidade cáustica tropical derramando pétalas de ipês roxos, brancos, cor de rosa, uma tarde carregando lembranças de tantas décadas, de toda uma vida vivida entre altos e baixos, mais baixos do que altos, e duas mortes para contar a minha história. Morte de pai e mãe, não se tem idade pra se sentir órfã, o tempo passa encerrando etapas e vamos seguindo, temos de pagar contas, tirar certidões e atestados, temos de manter a sanidade mesmo que nossa alma esteja por dentro e fora rachada, desmilinguida, quebrada, mesmo que pensemos já termos finalizado o inventário de nossas esquisitices, nossas conversas, vidas e sonhos, parece mesmo que nunca estaremos prontos ou ao menos semi acabados, pois parece não ter fim a trajetória que nos lança sempre adiante, sempre ao por vir de um futuro que jamais alcançaremos. Não adianta derramar lágrimas, ninguém vai reparar o quanto dói em ti a vida, ninguém vai parar na calçada e perguntar o que te acontece.  A vida apenas segue seu fluxo natural e simples, é assim que é. Um mendigo passa por mim como um fantasma embrulhado num cobertor azul por cima dos trapos que cobrem seu corpo magro seu rosto rude empoeirado encardido fedor e segue rumo acima, pairando sobre as presenças ausentes da multidão que caminha, cada qual investido de seu pequeno poder, indo e vindo em ruelas vazias, o sol tímido roçando a superfície das coisas, o cascalho brilhando nas sarjetas, acaso haverá ouro no cascalho? Cuiabá sempre foi repleta de ouro daí talvez o brilho das suas tardes ensolaradas, dos seus becos iluminados a noite pelas luzes amargas de pó na garganta dos aflitos. Penso na mãe, no pai, eles estão longe de mim em um espaço estranho que se chama reino dos mortos. Eles estão em algum não lugar que desconheço. Meus tornozelos doem porque eu mesma me fiz velha. Tenho marcas e cicatrizes no corpo e na alma. Quase não reconheço aquela que me olha no espelho da vitrine da loja de brechó. O tempo transforma nossas faces e destinos. Carregamos um corpo que nem nos pertence pois esse corpo passará. E a terra nos acolherá num último suspiro, aquele pelo qual a alma exala abandonando a vida e fluindo através do éter. Depois, dizem que os anjos baterão suas asas para nos levar para aquele não lugar que nos aguarda. É tudo fantasia, sei. Mesmo assim teimo em guardar memórias que não cabem no coração.