Um livro mundano. Encontro nele coisas do mundo, um jeito comum de viver as coisas antes mesmo de dizê-las. É o terceiro livro de Viviane Santiago que leio. Gostei diferente deste. Talvez pelo que me preencha, do que me traz de vivências passadas e, confesso, apaixonei-me por Madalena – acho que aquela, sim era a mulher de verdade.
Gosto da maneira sutil com que o tema do estupro se coloca. A linguagem seca da escrita, logo nas primeiras páginas me traz a imagem de “Vidas Secas”, de Graciliano, não pelo estilo, mas pelos inominados que se apresentam: “… os meninos aqui sozinhos, (…) O mais novo mal fala e o mais velho está desistindo de falar também” (p 7).
E o olhar de Madalena sobre o mundo a sua volta, do alto de seu telhado que me lembrou da pré-adolescência em que subia no de casa para fumar escondido da avó, enquanto os pais estavam a trabalho. “Daqui de cima Tavinho fica ainda menor, quase some na terra seca, assim como papai. (…) Maldita Dona Isaura (…) Bendita Dona Isaura”. (p. 8). Ele e seu panóptico em que vislumbrava o céu, acima de todas as coisas. Cada qual com seu panóptico, como diria Foucault.
Tenho lido muitas obras que tratam de abusos e suas consequências nefastas na vida de mulheres, famílias, com as marcas que o corpo e mente transformam em cicatrizes. “Eu me possuo”, de Stela Florence, “O peso do pássaro morto”, de Aline Bei, “Desesterro”, de Sheila Smaniotto, “Com as armas sonolentas”, de Carola Saavedra, “Mamãe eu também não gozei”, de Letícia Bassit e “Ao pó”, de Morgana Kretzmann são alguns deles. Este consegue ser cru, sem rispidez; cruel, sem subterfúgios, dramático, sem exacerbamentos linguísticos ou apelos emocionais.
As imagens são de um realismo que se insere na tradição: “… que nenhum cão faminto coma meus irmãos” (p. 9), por um lado, traz, por meio de polifonia, rastros de aparente regionalismo que se apresenta no campo linguístico por alguns detalhes: “- Maldita hora que segui o pai de ocês por estes caminhos cegos que ele fazia, nossa vida ia ser outra, ocês iam comer era carne todo dia”. (p. 10).
Viviane é mineira radicada no estado de São Paulo há algum tempo. Mas talvez as Minas Gerais não tenham saído tanto dela.
Nossa rua era estreita, de barro esfumaçado, sem saída, parecia até a vida da gente.
Casa um, Dona Isaura.
Casa dois, a nossa.
Casa três, Seu Tonho.
Casa quatro, este, nunca ninguém viu. (p. 12-13).
O desenho daquela rua traz um geometrismo simples, quase que banal (só que não). O entendimento local deriva dessa constituição espacial e valoriza o telhado de onde Madalena vê o mundo, assiste ao espetáculo diário da sobrevivência, quase que a preço de banana, “amarga feito o mato verde da cerca que mamãe insiste em chamar de salada”. (p. 13). Terra onde “Nunca ouvi falar de assassinatos por aqui, continuo não ouvindo, pois o que houve foi uma lavam de roupa suja”. (p. 20).
Aquelas pessoas quase não falavam e o silêncio pesado era fruto de ausências. “Coisa boa na vida é falar, é comer”. (p. 55). A mãe desposada se transforma em alguém que vivia para os filhos. Cinco deles com suas bocas famintas que o pai um dia deixou para trás. “Filhos precisam de pai, e mesmo que não te perdoem, será de extrema importância saberem que você não é mais aquele homem. Amadureceu e está tentando mudar”. (p. 64). Somente o tempo para minimizar a cura de tais chagas.
– Alô?
– Pai, sou eu, Tavinho.
– Meu filho, o que aconteceu?
– Eu queria, digo, quero que venha tomar um vinho comigo, em comemoração ao nascimento de Aurora, minha primeira filha. Posso pedir uma pizza, quem sabe, se você gostar. (p. 130).
Esta citação me traz à lembrança a música de Fábio Júnior: “Pai, você foi meu herói, meu bandido”, que embalou reencontros desde os anos 1980. A “Rua três não parecia mais a mesma, ao longe, parados, olhando tudo que poderia ter sido e não foi”. (p. 140). O pai, sendo chamado por um de seus filhos, justo o que cresceu aterrorizado pela imagem da onça preta que comia crianças. Não se apaga da vida qualquer lembrança marcante. “pra que tirar do mundo o que não sai do coração?” (p. 141).
Quando cheguei ao final, já refeito do transe, do sofrimento solitário que a história me trouxe, repouso o olhar como quem enxerga o clássico de Jorge Amado “Capitães da Areia” na passagem que trago abaixo:
– E Tavinho, será que vai ser bom para o quê?
– Ah, Tavinho, esse vai ser bom em tanta coisa, mas a melhor será para contar histórias.
– E contador de histórias lá é profissão, Madalena?
– É sim Tavinho ainda ganhará dinheiro escrevendo usas histórias, me promete que você vai esperar para ver? (p. 166).
Pareço ouvir Pedro Bala falando dos meninos todos. E ao mesmo tempo me sopra aos ouvidos lá das Gerais a mineirice de Guimarães quando me deparo com “Um vendaval muito forte tomou conta de tudo, só consegui sentir quando o redemoinho de terra seca me envolveu em uma única levada”. (p. 170). Não, nada disso rusbank.net . Viviane é uma escritora talentosa que surpreende por uma profundidade que não se escora em vocabulário preciosista, não precisa; traz a história dentro de si e chama a responsabilidade para emocionar o leitor.
Não sei se foi sempre assim, mas penso que o aprendizado vem com o crescimento e maturação que as experiências acoplam ao nosso próprio ser. “aprendi que quando se conta histórias é você quem manda”. (p. 177). Penso que tenho me tornado um pai melhor, talvez esse tenha o melhor aprendizado com este livro.
REFERÊNCIA
SANTIAGO, Viviane Ferreira. Pó. Vila Velha, ES: Amplitude, 2020.