Camila Cecílio
os manequins infantis
nas vitrines das lojas da cidade, tristonhos
olhos arregalados a mirar qualquer horizonte
vestem camisetinhas de borboletas e dinossauros
all starzinhos de cano alto feitos para correr mundo
lembram que crianças de fibra não correm
tampouco conhecem o mundo
do lado de lá do vidro, crianças de fibra encaram
os rostos pálidos das mães que perderam
seus bebês dentro de suas barrigas
para lembrar do botão
do vestido rodado que não encontrará
o fecho sobre a pele macia e quente
do tecido do tênis tamanho dezoito
que permanecerá limpo
por falta dos pés sobre o chão
do macacão jeans que não se rasgará
na altura dos joelhos
porque não haverá pernas para engatinhar
nas vitrines das lojas infantis
as crianças de fibra não sabem de si
tampouco das mães que perderam
seus bebês ainda dentro da barriga
fora das lojas também não
um bebê que morreu dentro da barriga
é como crianças de fibra do outro lado do vidro
sem rostos, os olhinhos que nunca serão vistos, quiçá horizontes
crianças invisibilizadas pela fumaça
das grandes cidades
pelo preço das fraldas que precisarão
ser descartadas
pelo funeral que nunca terão
mães caminham sozinhas
à procura de algo que caiba
dentro do vazio que fica
depois que um bebê morre
dentro da barriga
e contraria o fluxo que prometia
a vida antes da morte
dizem
normal um bebê morrer no primeiro trimestre
dentro da barriga
dizem
outros virão
como se bebês fossem quadros que despencam
da parede para que outro seja colocado no lugar
depois que os cacos se espalham
e cortam o assoalho
falam do sangue como se fosse mera menstruação
ignoram que a morte leva também
uma parte de quem fica
a parte da mulher que aprendeu
a olhar para si mesma
e se chamar
Mãe
Camila Cecílio é jornalista e escrevedora das coisas de dentro da gente. Cuiabana, vive entre São Paulo e o interior do mato, onde encontra o fôlego e força necessários para continuar em busca de mistérios do viver.