Benditos foram os anos de 1980!
Esta foi uma década de muitos encontros em Cuiabá. Foi quando surgiram vários movimentos artísticos e culturais embrionários que deflagraram o início de uma cidade mais conectada ao que rolava e rola no mundo, estabelecendo um diálogo muitas vezes profícuo.
Cuiabá vai perdendo o ar de província e seus habitantes passam a produzir uma enorme variedade de expressões e linguagens urbanas que têm dimensões planetárias, não estou dizendo que isso é necessariamente bom, é só uma constatação. Hoje é bastante comum a gente se deparar com arte de rua, performances, rock, hip hop com suas várias formas de expressão como o rap, o grafite e a dança; vídeo arte, arte digital, instalações, enfim, todo esse repertório que compõe o espectro de uma urbe metropolitana.
Mas lá atrás, na agitação dos anos 80, algumas cabeças iluminadas deram os primeiros passos nessa direção, criando as bases para um diálogo cosmopolita.
É preciso voltar um pouco mais no tempo, não dá para esquecer que já tínhamos referências fundamentais, desde os anos de 1950, com um Wladimir Dias Pino, que a gente se apropria e diz que é nosso, cuiabano, apesar de ser carioca de nascença, que ao lado de Silva Freire criou o movimento denominado Intensivismo em Mato Grosso já com pressupostos avançados para a época.
Mas o trabalho de Wladimir quebrou barreiras, saiu dos limites geográficos e inseriu seu trabalho em um contexto que representava a inteligência brasileira mais avançada, criou aqui o movimento de vanguarda inaugurando o Poema (como) Processo. Vejo nele uma antecipação de visionário com o trabalho de mix e remix, corte e recorte, copia e cola, que usa, em sua enciclopédia visual infinita, onde utiliza imagens recorrentes na visualidade universal para criar outras significações, num processo de remixagem visual interessantíssimo.
Ricardo Guilherme Dicke, de Deus de Caim, Caieira e Madona dos Páramos, e tantos outros títulos, em outro patamar, também colocou sua obra entre os grandes romancistas brasileiros. São produções que sempre estiveram e estão em conexão com a criação de autores de qualquer tempo e lugar do mundo.
Vale recordar numa perspectiva mais pop, das artes plásticas, quando Adir Sodré e Gervane de Paula, foram alçados a um reconhecimento nacional inseridos no movimento denominado Geração 80. Foi quando seus trabalhos passaram a ter uma visibilidade na perspectiva de um mapa Brasil e quando são levados para as principais galerias e eventos plásticos do país.
Em meio a todo aquele caldeirão que fervia por aqui surgiu o grupo de teatro de Rua Gambiarra, com Liu Arruda, Ivan Belém e Meire Pedroso. Sacudiram a cena teatral com uma proposta que fazia essa interação do local com o universal, com uma linguagem arrojada, desbocados e livres, fazendo um teatro popular, político, encenando nas ruas com um sotaque cuiabano. Aprontavam muito pelos cantos e recantos da cidade, mexiam com a estima dos cuiabanos.
Digo isso para alinhavar esses tempos com os dias de hoje. É tempo de relembrar esses fatos e contar essas histórias. Tempo de produzir memória, narrativas da cidade, da sua produção de linguagem e afetos.
Ivan Belém, mergulhou fundo na pesquisa e trouxe à tona o livro recém lançado “Liu Arruda – A travessia de um Bufão”, editado pela Carlini e Caniato, onde pincela partes dessa história e tece uma narrativa da trajetória desse impagável bufão que nos deixou muito cedo. Os anos 80 na cidade tropical foram marcantes.
É impossível falar de Cuiabá sem lembrar dessas figuras que constituem uma rede imaginária que dá sentido para uma cidade. Toda cidade tem seus tipos e contra-tipos, figuras que de alguma maneira marcam suas histórias no imaginário do lugar. Seja pela maldição, seja por feitos lendários, seja pelo que o torna visível nessa massa de invisíveis.
Confesso que ainda não tive o prazer de ler o livro do Ivan, figura de peso em uma narrativa local, velho conhecido da cena, fazia o contraponto perfeito ao lado de Meire Pedroso para a figura super carismática do Liu Arruda.
Lembro também do evento que o Liu criou, paralelo ao Festival de Inverno de Chapada, o Borduna Cultural, que foi uma reação contra o status quo na época, quando os artistas locais se sentiram desprestigiados com o tratamento dado pela coordenação. O Borduna foi um festival paralelo, um tremendo sucesso, lotando a tenda de um circo armado logo na entrada da cidade. Participei com a banda BR 364 que fez um barulho danado na época. Ao final do show, Liu, sempre desbocado, quando foi nos pagar o cachê soltou uma gargalhada que ecoa até hoje em meus ouvidos da memória, “Eduardo Ferreira nunca paguei um cachê tão caro para um show de pouco mais de 5 minutos, kkkkkkkk”. Era o equivalente hoje a 500 reais.
Explico, nossa banda tocou 12 músicas em 5 minutos, era a característica da nossa música, um estilo chamado grind core, em que as músicas são curtíssimas, poucos segundos bastam, letras rápidas e ríspidas. Borduna neles! Liu não sabia que seu escracho para nós era um elogio. Banda grind que se preze é porrada curta, no cérebro, direto, sem intervenções, o show era cirúrgico. Queríamos fazer o menor show, concentrado como um hai kai explosivo, coquetel molotov.
uma aula de história conceituando a decada de 1980; a banda BR364 eram : Eduardo Ferreira contrabaixo e vocais, Wender(ground) vocal principal (e guitarra fictícia), André Balbino guitarra/viola caipira, Mamute bateria (o mais rápido e agressivo de todos os bateras)
isso aí balbino, a história taí, pra gente ir colando cacos