Subam ao palco que hoje tem poesia de Marilza Ribeiro e música de Karola Nunes. Subam ao palco e tomem uma cachaça, um suco de caju, aprendam a fazer um tsuru, dizem que quando se faz mil um desejo é realizado. O desejo se realizou, um papel em branco é o palco dos atores, dos poetas, dos inventores. O que você faz quando está diante de um papel em branco? Respondo que escrevo. “Põe para fora”, digo meio tímida.
Indagada, a poetisa de 82 anos responde que escreve como cachoeira, ora como deslizando nas nuvens, ora como uma xamã que recebe raios, para escorrer o que esteve silenciado por milênios: o choro, a voz da mulher, de todas as mulheres. Recita “O sonho impossível” de Chico Buarque e reforça que temos que ser como Dom Quixote e lutar contra o vento.
A poesia se intercala com a música de Karola, os atores explicam que este é um encontro, e dançam antes de jorrarem palavras, poemas, sentidos. A mulher que chora a perda do filho, entra na bacia com terra, um corpo despedaçado de boneca. A terra suja o papel em branco.
Pedem que fechemos os olhos. Apagam as luzes. Imagine quem você gosta. E o poema desliza pelo corpo todo, me transcendo, vou para outra atmosfera, um fragmento de memória só meu. Volto com um sorriso no rosto e olho em volta, as pessoas choram. Sentimos a poesia em nossos poros.
Os poemas e a música (en)cantam para ser extrassensorial. Mordem o caju e se lambuzam com a fruta, com este sentido adquirido pela poesia cuiabana, lascívia, nossos elementos misturados com prazer, com a pele. É palpável. Dá para sentir no ar.
As palavras caem em folhas de papel das mãos de quem as recita. E então tudo se acaba. Rasga-se o papel que agora está escrito com palavras aleatórias, por quem ousou interagir para criar naquela folha que estava em branco.
“As aves e os poetas ainda cantam” – a peça leva o mesmo nome do livro de poemas da autora – marcou meu domingo com uma poesia que ainda me era desconhecida, mesmo estando logo ali, quase na esquina da minha vida.
Um livro de Marilza Ribeiro e não sabem como sorteá-lo, grito que quero em um impulso exagerado ávida por devorar toda a sua poesia. Trago para casa o livro. E acompanho a poetisa com seus passos firmes descer pela escada do Cine Teatro dizendo: “Até os 100 anos eu vou continuar escrevendo”.
Inconsistências
Na cidade-arena
feito polvo-máquina
condicionando
seres sonâmbulos
multidões
nas grades
do não sentir
não pensar
não entender,
o pós moderno
pavão eletrônico
planta
nas mentes
nas carnes
recados-sementes
tramas
tensões
roteiros
receitas delirantes
na montagem
de um anti-Eu
sob medida.
Nos artifícios
de práticas anunciadas
criam-se utopias
insólitas
promessas
de um paraíso perfeito
do vazio.
Ficha técnica do espetáculo: Encenadores: Talita Figueiredo, Karina Figueiredo e Benone Lopes; Poesia: Marilza Ribeiro; Música: Karola Nunes; Direção: Jan Moura; Iluminação: Karina Figueiredo; Operação luminotécnica: Thayana Bruno; Cenário, figurino e adereços: Confraria dos Atores.