Por Demétrio Panarotto*

O que fazer quando a tua alma foi substituída por uma barra de chocolate e as formigas, que até agora tu havias conseguido manter distantes, estão te atacando? Assim se sentia Eluzardo, depois de ter atirado na galinha do vizinho. E tudo isso soaria com certa normalidade se não tivesse acontecido em um condomínio-quitinete localizado no centro neurótico de uma cidade que transbordava gente pelos poros.

O vizinho, o dono da galinha, havia trazido a penosa do interior. Era galinha de estimação, e que tinha muita importância para toda a família. Importância que gerou protestos dos familiares, lá no início, quando o moço colocou-a debaixo do braço e partiu para tentar a sorte na cidade. Todos diziam: a Edilene não vai se acostumar com o barulho, com o ar, com os vizinhos, com a comida, com a gente da cidade… Na cidade eles só conhecem galinha em pedaços, embalada, resfriada, congelada, com etiqueta, com preço tabelado, galinha de discurso de presidente… ela pode ficar traumatizada. O argumento da família não teve força alguma, e o tempo que a galinha permaneceu na cidade não foi o suficiente para desfazer a dúvida: morreu antes.

Eluzardo, no dia daquilo que chegaram a tachar de crime, tomado pelo medo de ser assaltado novamente, isso já havia acontecido muito mais vezes do que conseguia lembrar, mirou no vulto e sem querer acertou Edilene. Depois do sucedido, ajoelhou-se em prantos no corredor. Ninguém deu muita bola, nem ao fato dele ter matado a galinha, nem ao fato dele estar ajoelhado chorando depois do acontecido, a não ser o dono da galinha que, sem querer saber de ‘chorumelas’, jurou Eluzardo de morte.

dipendenza-fuga-dalla-realtàE Eluzardo arrumou as malas e se foi embora. Um foragido. Havia matado uma galinha no meio da loucura da cidade. Até o Greenpeace era capaz de aparecer, diagnosticou, em meio a sua saída apressada. Sem contar as ongs, os pais, as mães, as tias das ongs…

O que fazer com a coitadinha?, disse o dono, que esfarelou os miolos para só aí chegar à conclusão de que precisava dar a ela enterro digno, à altura de seus antepassados.

Primeiro, chegou a pensar em fazer o translado do bicho morto até a sua cidade natal, mas como? Não tinha experiência. Assim, matutou por horas a fio uma maneira de entrar no ônibus sem ser notado. Todavia, antes que fizesse algo fora da lei, os parentes, como se fosse um veredito moído e remoído inúmeras vezes, disseram:

– Não precisa trazê-la, nós vamos até aí…

É óbvio que uma parte foi conscienciosa, pois queria aproveitar o velório da Edilene pra conhecer a cidade, mas, por fim, todos, pelo menos essa era a ideia que alimentavam, queriam era se despedir da bichana.

Depois que ficou definido que viriam, o jeito foi procurar lugar para velá-la. Primeiro ele tentou fazer o velório em uma funerária, pois o seu apartamento era muito pequeno e com a quantidade de parentes era bem provável que faltaria espaço. Mesmo dizendo que pagava em dobro, não conseguiu nas redondezas funerária que aceitasse o trato. Passando de porta em porta e sendo tachado de pinel a toda hora, decidiu que o velório aconteceria no apartamento em que morava, e basta.

Como havia sentenciado no começo da procura, o espaço se tornou por demais pequeno. E a fartura não foi só de parentes; o que mais o assustou, e assustou a familia também, foram os volúveis, voláteis, avulsos, agregados, estrangeiros, desconhecidos etc.

galinha2Ninguém sabe como e porquê, mas a notícia correu de boca em boca e, como em uma cidade do interior, o povo foi se achegando. A curiosidade é que fundava os alicerces. Todos queriam ver o “matuto que estava velando uma galinha no furdunço da cidade”. E como se fosse um dia de clássico em um grande estádio de futebol, os arredores do prédio ficaram tomados por transeuntes que primeiro tentavam entender a razão pela qual alguém queria enterrar uma galinha com as pompas de um ente querido, mas, ao mesmo tempo, demonstravam felicidade por participar do momento histórico, como disse um dos presentes, pronunciando a palavra mágica que o repórter queria ouvir para pegar o gancho e prolongar a entrevista. E o caso deu pano pra manga em uma emissora de TV com um discurso lavado no sabão em pó e amaciante dos patrocinadores.

Isso mesmo, se a notícia, primeiro, correu de boca em boca, depois se tornou manchete em um pequeno noticiário de TV. Daí para o resto isso é apenas passagem: conforme aumentava o número de pessoas em frente ao prédio, mais matérias saíam falando sobre o assunto nas mídias especializadas.

Outra passagem: comoção nacional. Chegou um momento em que as pessoas davam a entender que não sabiam ao certo o que estavam fazendo ali, mas onde tem gente e vira notícia as moscas vêm de todos os cantos, e aos poucos era uma multidão que tomava conta do largo em frente do prédio e, junto, como todo evento grande, montou-se um comércio: barracas de cachorro-quente, de pipoca, de churos gourmet, de algodão-doce e vendedores de bebidas se espalharam pelo local.

E o caldo só engrossava. O número de faixas era incontável e com os dizeres mais estapafúrdios – em especial, de agradecimento e de adeus a Edilene –, do tipo: “Edilene, nós sempre te amaremos”, “Justiça”, “Vai com deus, Edilene”, “’Pais’ Edilene”, “Fora Sadia”, “Queremos Edilene na Playboy”, Edilene…

O moço e a moça que apresentam o jornal da noite se separaram: enquanto um transmitia ao vivo do estúdio, o outro foi até a porta de entrada do prédio, com cara de quem tinha perdido a mãe, dando as últimas notícias sobre o velório da Edilene. E a galinha, diante da repercussão dos fatos, se transformou (parece mágica, né?) em símbolo da nova geração; uma geração carente de ídolos, diziam os comentaristas de TV.

2114499Eluzardo, ao saber da confusão pelo jornal da noite, voltou disfarçado, e talvez nem precisasse, ao local onde morava; e ficou, já na chegada, espantado com as desmedidas da vida, de como hora cabe, hora descabe, pois até o policiamento havia sido deslocado pra lá, coisa que há muito tempo não se via por aquelas cercanias.

 

demetrio*Demétrio Panarotto nasceu em Chapecó-SC, em 1969. É doutor em literatura, professor universitário, músico e escritor. Publicou, dentre outros, “Mas é isso, um acontecimento” [Editora da Casa, 2008, poemas], “15’39”” [Editora da Casa, Alpendre, 2010, poemas], “Qual Sertão, Euclides da Cunha e Tom Zé” [Lumme Editor, Móbile, 2009, livro/ensaio], “Poema da Maria 3D”[Coleção Formas Breves, e-galáxia, 2015, e-book], “Ares-Condicionados” [Nave Editora, 2015, contos] “A de Antônia” [Miríade, 2016, infantil]. Co-diretor dos documentários “Só Tenho Um Norte” [2008] e “Cerveja” Falada [2010]. Com a banda “Repolho” lançou 4 CD’s entre 1997 e 2009, e o compacto em vinil “Sorria, meu bem! (oh Sweet Lucy)” [2004]. Com o projeto “Irmãos Panarotto”, com Roberto Panarotto, lançou os CD’s “2Violão e 1Balde” [2004] e “Chamando Chuva” [2012]. Vive em Florianópolis-SC.

 

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