Por Carole B. *
Anteontem reencontrei, por acaso, o seu compasso. Foi no centro da cidade, perto do moço indistinto que lia jornal de peito aberto no cruzamento das pressas. Senti falta desse ritmo, suas ternas divisões, feito bicho que suspira desejando acelerar. Da última vez que perguntei você me disse estar tudo ‘mornal’. Achei trágico e genial. Há momentos em que apenas inventar belas palavras nos permite descrever as piores sensações. Hoje acordei com vontade de chorar. Ou foi a vontade de chorar que me acordou? O espelho deserdou quando as clavículas saltaram. Saudade não é nome: é condição! Os feriados são domingos fora de época que fazem explodir de contenção meu coração; quando o suposto feriado cai em um domingo, então, a queda é clara – quanto mais lento e mais longo, mais sombria e pesada… Por isso escrevo; para pedir a sua mão e oferecer-lhe a minha, gelada, quase descascando – mas ainda capaz de aquecer um velho amigo. Tantos anos de convivência, creio, permitem que nos alcancemos à distância – e contudo, esqueci de mencionar o que deveria ser o principal motivo desta carta: seu aniversário!
Haverá de ser forjada uma pílula – ou uma capa – que nos proteja do fruto das noites estéreis! Pois quem ousar trilhar a ecologia da alma humana tão logo atestará que existir é insustentável. Eu sei, você disse: a geladeira pifou, o carro quebrou, a televisão descoloriu-se sem aviso… só a sua pilha ainda não arriou – mas Deus é lúdico, fez do céu seu tabuleiro. A graça do humano é funcionar mesmo que falhe; é prosseguir, ainda que deseje ardentemente congelar. Não existe erro; existe acertar fora do alvo. É preciso aprender a suportar a eternidade – e para isso, há somente o tempo escuro de uma vida que se acaba. Os imortais, Daniel, são os primeiros a morrer. Não me atrai ser imortal: prefiro ser vital.
Companheiro, não desvie seu foco dos pensamentos desviantes! O mundo precisa da nossa sensibilidade, assim como nossa sensibilidade precisa do mundo insensível. Não, não são disposições complementares: são contrários que disparam, dolorosamente, numa mesma direção – não colidem e sai faísca; não se olham, mas se mapeiam; não se tocam, mas se percorrem. O segredo é deixar os mortais morrerem e seguir morrendo. Você completou trinta e quatro anos anteontem; mantenha isso em mente, apenas para lembrar-se que poderiam ser dezoito. Somos o que fomos e o que jamais seremos. Desde sempre, até nunca. Não existe passado, presente ou futuro; tudo o que temos é o tempo que perdemos e a crueza das horas incitando esperanças com uma faca sem fio – fere e arranha, sem cortar – e assim vai fundo.
Cuide-se apenas o suficiente, não morra de tanto convalescer – a doença é a transversal da cura. Se as máquinas de viver se esvaíram, lembre-se do café, substantivo saboroso. Se o mundo é injusto e triste, pense no quão democrática é a Natureza, que mata a todos sem nenhuma distinção. Quando for acometido por aquela inevitável solidão de hipermercado, busque dentro de si o cabaré verde de Rimbaud e sinta o queijo suculento derretido nas palavras. Eis o cotidiano mortal, sem o qual não se vive! – aliás, deveria haver um curso de reeducação compulsiva para pessoas moderadas. Porque a razão não evita o sofrimento – jamais!; racionalizar é apenas uma outra forma de sofrer. Mas… é preciso ter cuidado ao descuidar-se! Sabedoria e alienação são dois lados da loucura – e se você entende isso, caro amigo, é porque não enlouqueceu. Ainda.
Um beijo afetuoso!
E feliz aniversário, a pesar nos pisares.
Com amor,
C.
*Carole B. é poeta e mora no Rio de Janeiro
Carol brinca, passando intensidade nas palavras, q são frias, conseguindo juntar emoções antagônicas, numa poesia de harmonia dos sentimentos….
Sou sua fã.
Carol é Ourives cavucando joias