A primeira vez que ouvi falar do Matheus foi através das palavras de uma amiga de minhas filhas que frequentava bastante nossa casa, a Belquise. Ela dizia repetidas vezes: “Tio, você tem que conhecer meu irmão, Matheus, ele é poeta.” Meio desconfiado eu respondia: “Beleza, Belquise, qualquer hora a gente vai se conhecer.”
E o tempo foi passando, volta e meia ela repetia: “Tio, você precisa conhecer meu irmão poeta, o Matheus!”. Certo, Belquise, uma hora a gente vai se conhecer. “Ele publicou um livro!” ,” Ok, Bel, uma hora leio o livro dele, pode me trazer um exemplar?”
O tempo escorre aos nossos olhos como mel derramado, quem não lambeu, não prova mais, já passou. Pensava desconfiado desses poetas jovens que logo querem publicar. Daí, vejo Matheus na mídia. Daí, minha filha, Marianna Marimon, faz uma matéria sobre o trabalho dele. Daí, vejo textos dele nos jornais e a celebração de boas vindas ao jovem poeta. Apresentado como uma explosão de talento, reconhecido e indicado por mestres de literatura, de São Paulo, de Mato Grosso, do Brasil, está aí uma nova poesia que se impõe como das boas novidades na poesia brasileira contemporânea.
“Tio, meu irmão ganhou tal prêmio!” – Cadê o livro que você ficou de trazer, Belquise? Passaram-se alguns anos. Daí, agora, me convidaram para entrevista-lo para a TV de Quinta(L) do site Cidadão Cultura. Ok, vamos lá!
Matheus Guménin Barreto nasceu em Cuiabá, nos início dos anos 90. Pai mineiro e mãe de São Paulo. Iniciou seus passos na literatura como leitor voraz, vivia com livros por todos os lados. Leu muito e lê muito, é um estudioso, faz mestrado na USP, tradutor, apaixonado pelas línguas (brinca com o alemão) e pela linguagem poética. De tudo que vi na imprensa acho um clichê o que os sites e jornais repetem à exaustão: “Matheus é o novo Drummond! João Cabral de Mello Neto! Matheus é não sei quem!!??” Só não vejo ninguém falar do próprio Matheus. Discordo. Matheus é Matheus, é Guménin, é Barreto e ele só pode sê-lo por inteiro. Matheus é um só, com sua sensibilidade e conhecimento delirante. O garoto é bem precoce, falamos sobre a história da arte, da música, da literatura, dos esplendores que pipocam nessa Cuiabá contemporânea, e ele mostrando uma animação que me cativou. Não precisamos esperar as coisas acontecerem , se for esperar, sente-se, espere, ninguém pode saber se vai acontecer. Mas se você se levantar e se mexer, aí sim, você pode fazer as coisas acontecerem, é assim que as coisas acontecem, fazer, fazer mais! Nisso a gente concordou em cheio.
Provoco-o, cito Manoel de Barros e a poesia como um estado de ser da infância da linguagem, ele pega o gancho e vai embora, é preciso dar vazão ao lado infantil, no sentido da instintividade como componente da criação, mas ele é exigente e depois considera e reconsidera, adentra o mundo da racionalidade, trabalha e trabalha e trabalha como um ourives esculpindo joias. É preciso suar, é preciso esforço, cita Ezra Pound. Falamos das múltiplas formas da beleza, não da beleza passiva, que não provoca movimentos, falamos da beleza que provoca, que causa estranheza, e que é preciso educar os sentidos e não descartar aquilo que rompe com os paradigmas, que trazem desconforto intelectual. Cito Stockhousen que foi execrado nas redes sociais ao elaborar frase polêmica e muito mal compreendida em sua dimensão trágica e poética ao exaltar a beleza da explosão de 11 de setembro que derrubou o Templo do capitalismo nos EUA, “a maior obra de arte já realizada”. Falamos da essencialidade da beleza, do caráter inútil da arte, Oscar Wilde, “Toda forma de arte é completamente inútil” e falamos, falamos mais que as bocas.
Fui ficando admirado pela dignidade que mora nesse menino, sua honestidade intelectual, sua segurança ao discorrer sobre a história da arte e da cultura, a consciência lúcida e o jeitão de poeta avoado. Cito Antonio Sodré, falamos de Ricardo Guilherme Dicke, ele fala das potências que estão explodindo por aqui e concordamos, Cuiabá está efervescendo, o caldeirão está em ebulição, isso vai ser visto, isso vai ser falado, tudo aqui está acontecendo de uma forma grandiosa, na música, na literatura, no teatro, no cinema, enfim, somos entusiastas e concordamos que estamos vivenciando um fenômeno cultural vulcânico (penso em um vulcão por debaixo de nossos pés alimentando o fogo do caldeirão cuiabano) com raras precedências.
Falamos da nova literatura brasileira, ele cita Ana Martins Marques, da guerrilha poética que deve ser uma constante para transpor as barreiras culturais, dos novíssimos escritores de Mato Grosso, como Santiago Santos, Odair Moraes, Wuldson Marcelo, das novas publicações, de como tem gente publicando e concordamos que isso é muito bom. Falamos de Wladimir Dias Pino, falamos de Roberto Victório e tantas coisas boas acontecendo por aqui que a gente só vai se dando conta falando, pensando, (se) debatendo, escrevendo sobre isso.
7 POEMAS DE MATHEUS GUMÉNIN BARRETO
Canto da Dissolução
Sepultadas no tempo
deitam-se as coisas todas,
que já nem coisas são,
mas memória de coisas.
Sepultados no tempo
afundam-se os rostos
todos, ou quase todos,
e as datas, risos, gostos.
Sepultadas no tempo
jazem as nossas vidas,
num tempo em que não são
nem gozo nem ferida.
Sepultados, enfim,
no tempo, todos nós.
Onde não há nem feito,
nem pessoa, nem voz.
Se questo è un uomo
Como é possível
um homem?
Pra quê? Pra que
lhe deram nome?
Que faz o homem?
Se, mal existe,
já some?
Como é possível
haver um homem?
Melhor seria
tivessem gasto
a Criação
em rios, em pedra,
em bicho, em prado,
em homem não.
O homem nasce,
vê, come e morre
já sem perdão.
O último poema ou Rio Leite
A cabeça no limbo do tempo.
Descansar já sem rosto e sem nome
e, deitado no córrego insone,
esquecer-se do bicho, do homem
e, com o tempo, esquecer-se do tempo.
Neste Tempo
Neste tempo de horror
neste tempo
neste tempo sem tempo
de mãos crispadas e inverno nos dentes
de risos que não são
– só o amor que há é o dos bichos
e o das memórias frescas,
recém-cortadas.
Tudo está pousado nos objetos
Tudo está pousado
já nos objetos.
Batendo pulsando leve
tudo está já nas coisas
à espera do toque
um só
que o abra em flor
e estrume.
A pedra o cão o pássaro
o carro a moto o prédio
[olha olha agora]
tudo
já contém o que resultará
da matemática da poesia
equacionada por um toque.
Para o poema desta página
“Dedicado a Matilde Campilho, que sem saber me ensinou.”
para o poema desta página:
a – abrir a janela mais próxima
b – faltando a janela, criar uma
c – ver: flor. ou muro. ou golfo. ou merda. ou um casal descobrindo o mapa-múndi no corpo um d’outro.
d – repetir os passos anteriores.
Inútil
Inútil
inútil o gesto o plexo o beijo
inútil o desejo e o não-desejo
[igualmente
Inútil inútil o salto e a pausa
Inútil a mão no ombro alheio
[e próprio
Inútil soberanamente inútil
o gesto o plexo o beijo
nas campinas afiadas de verde
nas geometrias escuras da mente
e essa vontade de amar.