* Por Wuldson Marcelo

Segismundo vestiu a sua melhor roupa: um terno de cor clara sem gravata (tinha uma gravata azul turquesa, mas o cachorro Cronos a devorara meses atrás), uma calça esportiva, tipo caqui, e mocassins marrons. Era um dia de céu nublado, talvez chovesse no final da tarde. Pensou em comer uma maçã antes de sair. Desistiu. Olhou as horas no celular e imaginou que seria sofisticado ter um relógio. 8h15min. Não há novidades. Nenhuma mensagem via SMS ou no inbox do Facebook. No WhatsApp, uma mensagem do ex-chefe “Não se atrase!”. Verificou se já havia desligado o gás, fechado todas as janelas, deixado comida para a gata Capitu. Tudo em ordem. 8h45min.

Há dias Segismundo não tinha notícias de Hilda. E, agora, atrasado para a homenagem, pensou em não se dedicar a reflexões vãs sobre o paradeiro dela. Notou certa correria pela rua. Pessoas atrasadas para o ônibus. Sinal fechado, freios usados antes do desastre. A vida segue um curso. De manhã, receber uma medalha pelo serviço prestado ao departamento de trânsito por exatos 25 anos. À tarde, uma ida ao cinema, pois aproveitaria o dia da aposentadoria para assistir ao “Sono de Inverno”, de Nuri Bilge Ceylan. À noite, talvez tomar um copo de vinho no jantar e, antes de dormir, tentar concluir a leitura de “A Mulher do Viajante do Tempo”, de Audrey Niffenegger, que fora indicação de Hilda.

Como a cerimônia aconteceria às 10h, Segismundo decidiu esquecer Hilda temporariamente e se fixar no reconhecimento que estava prestes a encontrar pela frente. Lembrou-se apenas da carta que ela deixou, com apenas um curto comunicado e uma inexplicável recomendação, “Estou grávida. Vou embora por um tempo. Não me procure”. Ainda que quisesse abandonar a incompreensão, a não confissão cara a cara, como deveria ser feita por pessoas de intimidade, o incomodava. Não procurou amigos, nem a mãe de Hilda. A irmã dela, Cecilia, morava longe e destetava que a interrogassem sobre qualquer coisa. Principalmente sobre amor e outras fantasias. Sempre dizia “O tempo seca a beleza, seca o amor, seca as palavras. Deixa tudo solto, leve, desunido para sempre, como as areias nas águas”.1 E completava, “Não me perturbem com suas desairosas catástrofes do coração. A não ser que seja infarto. Aí, é coisa séria”.  9h25min, tempo para um café.

Segismundo chegou ao departamento às 9h45min. Cumprimentou alguns amigos. Na verdade, funcionários antigos. Recordou-se que o departamento em peso adquiriu os dois romances que inventou de escrever. Dois fracassos destinados aos logradouros e desvãos das insignificâncias literárias. Dois títulos reles, “Antes da curva final, a batida a 300 quilômetros por hora” e “A passagem de Daphne pela glória”. Tentativas de discutir o desejo de ser um vencedor, mas com inaptidão e falta de tempo para sê-lo. Duas vergonhas.

O chefe sorriu para Segismundo. A cerimônia, muito rápida, consistia em meia-dúzia de palavras bonitas, elogios à eficiência, a medalha colocada no peito e um cumprimento caloroso de mãos. Segismundo, enfim, aposentava-se. Fim de uma jornada.

Segismundo deveria pensar no almoço e no que fazer até a hora de ir ao cinema. “Como será que Hilda está?”. “Faminta e comendo por dois”. Aos 65 anos não imaginou que, um homem que organizava tão bem o trânsito para as pessoas se dirigirem às suas ilusões diárias, teria que lidar com a mais improvável das traquinagens da vida: um filho. E isso logo após uma discussão sobre a falta de dedicação dele aos sonhos de Hilda, jovem mulher de 30 anos, jornalista e remadora. Desejos contidos em um espaço para escrever sobre os lançamentos da semana e nos 8m03s16 do skiff simples feminino que conseguira obter certa vez. Lembrou-se que Hilda lhe disse que mediamos o espaço percorrido por nós e não o tempo. Medir o tempo é medir o espaço. “Não vou me alongar nisso. Leia Bergson”, disse com certo desdém.

Após a sesta depois do almoço, Segismundo abandonou a ideia de ir ao cinema. Faltaria com quem discutir no fim da sessão. E o filho, seria cinéfilo? Teria o hábito da mãe? As manias do pai? Hilda reclamava do quanto era taciturno, trancado em uma consciência freada pelas convenções mais canhestras. Talvez, o filho devesse ser espontâneo, sedutor, frenético. 17h30min. Decidiu que jantaria cedo. Meia-hora depois, recomeçaria “A Mulher do Viajante do Tempo”. Assim, teriam muito que conversar quando Hilda voltasse.

Segismundo adormeceu quase no final do livro. No sonho, delirou. Imaginou-se preso em uma câmara que passava o filme de sua vida. O filho, já adulto, reclamava que o pai tinha ideias antigas e a vida deles era governada pela dissintonia. E, no alto de uma montanha, dois relógios marcando horas diferentes confirmavam a sentença do rebento ainda não nascido.

Na madrugada, Segismundo percebeu que lhe restara apenas um sonho, o de ter a vida ordenada, bem calculada para evitar surpresas desagradáveis. A certeza de que Hilda compreendia isso veio por água abaixo com a pequena carta. E o dia que da boca dela surgiu o vestígio ignorado, “Irmão do meu momento: quando eu morrer… Uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo: morre o amor de um poeta. E isso é tanto, que o teu ouro não compra, E tão raro, que o mínimo pedaço, de tão vasto, não cabe no meu canto”.2 Por que imaginou que o futuro estava garantido com o trabalho? Com o conforto do dinheiro guardado? As perguntas caíram como bombas. Só que as respostas exigiam certa prática para a elucubração e investigação da vida, e, nisso, tempo e vontade foram aliadas para negar-lhe.

Segismundo despertou às 8h. Trazia no corpo marcas do dia estressante. Uns espasmos que indicavam que havia dores incuráveis pelo tempo. Aliás, o tempo era o senhor de hematomas, que lupa alguma deixaria expostas aos olhos dos curiosos. Bebeu um gole de café. Hilda adorava café. Agora, mais calmo, concluiu que dois tempos disputavam seus restos mortais: o de amar e o de esquecer. O tempo de amar, na verdade, já havia passado. Hilda não voltaria. Os bons momentos seriam meros fantasmas, um rio congelado. Restava o tempo de esquecer. A última chance de triunfo na vida. É preciso ser excepcional na missão, repetiu Segismundo para o homem no espelho. Um velho amigo.

Notas

  1. Trecho do poema “Canção clique aqui do Amor-Perfeito”, de Cecília Meireles, in: “Retrato Natural”, publicado em 1949.
  2. Trecho do poema “Poemas aos Homens do nosso Tempo”, de Hilda Hilst, in: “Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão”, publicado em 1974.
*Corintiano apaixonado por literatura e cinema. Autor dos livros de contos 
“Obscuro-shi: contos e desencontros em qualquer cidade” (Carlini & Caniato: 
MT, 2016) e “Subterfúgios Urbanos” (Editora Multifoco-RJ, 2013). É um dos 
organizadores da coletânea de contos e poesias “Beatniks, malditos e marginais: 
literatura na Cidade Verde” (Multifoco, 2013). Escreveu e dirigiu com Felippy 
Damian o curta-metragem “Se acaso a tempestade fosse nossa amiga, 
eu me casaria com você” (Miraluz Films, 2015).

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