“Eu varro o chão para o resto da minha vida, mas eu não volto para lá”. A frase é de uma mulher, mãe de família, presidiária. Após quatro anos cumprindo pena, conseguiu a tornozeleira eletrônica para voltar à sua casa, família, sociedade e ao trabalho. Presa por tráfico de drogas, a sua história é como a de muitos brasileiros e brasileiras. Para garantir o sustento, o marido começa a mexer com a venda de drogas, entra para a facção e não consegue mais sair. Mudavam-se de casa constantemente para fugir das batidas policiais. Em uma dessas, foram presos e perderam tudo. Mas, ainda podiam perder muito mais.
O verdadeiro inferno começaria com a condenação e o cumprimento da pena. Em uma cela estreita, cujo tamanho médio no país é de 6m², com pouca iluminação e circulação de ar, pessoas são amontoadas nestes espaços insalubres que remetem ao horror de tempos sombrios da humanidade. A cadeia possui suas próprias regras. Marcaram alguém para morrer? Água fervente no ouvido. Se não morrer em alguma briga, ainda é preciso sobreviver ao descaso com que são tratados pelo sistema penitenciário (o problema da tuberculose não é enfrentado, e não há preocupação em tratar e separar os doentes).
Dominado pelas facções, estas histórias já inspiraram filmes, livros, músicas, poemas. A arte como tentativa de aliviar a dor de todas as memórias que ficam marcadas por quem sobreviveu à uma prisão brasileira. Conhecidas como “escolas do crime” e “máquinas de moer pobre”, nossas cadeias estão nos holofotes do mundo, são protagonistas de chacinas e massacres dentro do espaço que deveria recuperar pessoas para reintegrá-las à sociedade. Corpos mutilados, esquartejados, decapitados. Cenas que mais parecem saídas de The Walking Dead. Mas, estão estampadas em todos os noticiários. É a vida real, sangrando nos jornais.
Um problema anunciado e silenciado pelo poder público. A reação inicial do governo federal foi distanciar-se. Em Manaus, mais de 56 pessoas mortas no Presídio Anísio Jobim no 1º dia do ano. O prenúncio de um 2017 manchado com sangue. O presidente temeroso rompe o silêncio recomendado pelos seus assessores e comenta o caso referindo-se como a um acidente. Memes invadem a internet, o Ministro da Justiça é ridicularizado: “A situação dos presídios está sob controle”. Controle de quem, senhor ministro?
Mas as notícias não param. O Brasil está em suspenso diante da iminência do colapso no sistema carcerário, um enfrentamento entre as facções, que comandam dentro e fora dos presídios. Depois de Manaus, a resposta veio na Penitenciária Agrícola de Roraima: mais 33 mortos. E os números continuam a subir. Enquanto escrevo essa matéria preciso atualizá-la: o maior presídio do Rio Grande do Norte, a Penitenciária Estadual de Alcaçuz registra 26 mortos.
As facções Comando Vermelho do Rio de Janeiro e Primeiro Comando da Capital (PCC) de São Paulo (com suas ramificações em cada Estado do país) digladiam-se pelo poder do narcotráfico, enquanto o país assiste inerte à carnificina dentro dos presídios, como se estivessem desconectados da nossa realidade. O governo tenta reagir e sair da letargia, o Conselho Nacional de Justiça recomenda correições imediatas para soltar presos e dar um fôlego ao sobrecarregado sistema. Mas não comentam o fato de que todas essas medidas são tardias e paliativas. Não encaram a realidade como ela é, pois expô-la fará sangrar os protagonistas, afinal, o país todo aplaudiu o filme Tropa de Elite quando escancarou a relação promíscua e obscura entre o narcotráfico e o Congresso Nacional (quem poderia mudar as regras do jogo). Não mudam por que não querem, pois beneficiam-se desse sistema.
Nossas cadeias parecem sair diretamente do livro Almas Mortas de Gógol, contabilizam-se mortos em troca de impostos.
Nas redes sociais, compartilhamentos e o bordão do sensacionalismo explorado em tv: “bandido bom é bandido morto”. O eco da ignorância e da barbárie martelando no senso comum, quem está fora da prisão trata quem está lá dentro como se não fosse um ser humano.
Com o modelo de guerra contra às drogas importado dos Estados Unidos, o Brasil mantém um ritmo acelerado nos números de encarceramento, sendo o 4º país no ranking mundial, com 622 mil pessoas presas. Atrás apenas dos EUA, China e Rússia. Deste total, 37% são presos provisórios (o que por si só já demonstra a falência deste sistema).
Muitos países tem flexibilizado suas leis para garantir relativa segurança ao que denominam usuário, como Espanha e Portugal, e o primeiro país a legalizar a maconha no mundo, o nosso vizinho Uruguay, que falei anteriormente aqui. Depois dessa matéria tivemos algumas notícias positivas: a Anvisa aprovou o primeiro medicamento a base de canabidiol, no fim de 2016 a Justiça liberou o cultivo da erva para duas famílias tratarem seus filhos doentes, e a Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados divulgou que caso fosse legalizada, o mercado da maconha movimentaria R$5 bilhões/ano.
Já o Brasil registrou um aumento de prisões por tráfico de drogas, a partir de mudanças com a Lei Antidrogas nº 11.343/2006, cujo objetivo era flexibilizar para o usuário, mas teve efeito contrário, uma vez que a quantidade não está estipulada na lei, o que a torna subjetiva. O delegado e o magistrado são responsáveis por definir quem é usuário e quem é traficante, e deve levar em conta o contexto da prisão e se possui antecedentes criminais.
De 2006 para cá, o número de presos por tráfico de drogas dobrou. Encontrei infográficos interessantes sobre a questão no site do Instituto Sou da Paz que defende a punição educativa para os microtraficantes.
A punição educativa é o que prevê a lei para quem se enquadrar como usuário, mas na prática não é o que acontece. E os números apenas corroboram para o inchaço do sistema carcerário brasileiro.
Acredito que este debate deve passar também pela legalização das drogas. No texto anterior, cito o ex-presidente do Uruguay, José Pepe Mujica, considerado um símbolo da legalização da maconha. O que o governo fez lá foi regulamentar um mercado que já existe.
Este mercado perverso das drogas serve a quem? Por que temos tanta dificuldade em debater sobre este tema tabu na sociedade? A criminalização das drogas resolveu o problema? Quando vamos começar a nos perguntar sobre?
Já temos corpos espalhados em todo o Brasil. Os nossos cidadãos sangram dentro dos presídios e isso é comemorado nas redes sociais. Afinal, quem é quem neste jogo de interesses escusos? Quem é menos humano? Quem cumpre pena no inferno ou quem celebra a miséria alheia através da sua tela de realidade líquida?
As mãos do Brasil estão manchadas de sangue. Ao invés de construir escolas, investir na educação e na formação dos nossos jovens, o governo anuncia investimentos bilionários para construção de mais celas. Prender, encarcerar, privar de liberdade. Pela lei, esta é a punição máxima e deve ser a exceção, não a regra.
*Depois de publicar a matéria a situação se agravou e o clima é de guerra na Penitenciária Alcaçuz e o governo federal liberou atuação dos militares dentro dos presídios.
pancada. vlw, Mari
essa matéria é pra fazer pensar, cutucou a ferida exposta, a hipocrisia rompendo mato, matando familias, pisoteando sonhos, cada macaco no seu galho é a puta que pariu, temos sim que olhar esse mecanismo insano de PRODUZIR MISÉRIAS que é o nosso sistema politico corrupto e sacana, temos que acompanhar o que acontece dentro desses “bordéis” de políticos e cobrar que a lei seja cumprida.
os gráficos que puseste na matéria são esclarecedores
creio muito que a legalização das drogas surtirá um efeito muito benéfico para a sociedade, e a grana que se investe para combatê-lo(o tráfico) pode ser usada em saude e educação por exemplo, sei que necessitamos uma discussão mais ampla e é possível essa discussão em plano mundial pois todos os paises que tem essa politica de liberdade às drogas defendem essa postura.
parabéns pela matéria!!!!
[…] com centenas de pessoas decapitadas, esquartejadas e queimadas em um cenário de guerra dentro dos presídios brasileiros. A enxurrada de tragédias noticiadas aponta para um horizonte mais sombrio do que o temeroso […]
[…] Uma planta paradoxal. Como é possível que mesmo com todas essas propriedades, a maconha continue a ser marginalizada? Seus potenciais não são explorados e não nos perguntamos por quê? Por que esta planta é criminalizada? Qual é o crime que uma planta pode cometer? Ela nos fornece tanto: medicamentos, roupas, alimento, casas. O que tem de tão errado nisso afinal? Por que não nos perguntamos a quem esta criminalização beneficia? Por que não nos perguntamos sobre o fracasso da guerra contra as drogas em todo o mundo? Muitos países começam a enxergar com outros olhos por que é uma questão de saúde pública. De nada vai adiantar criminalizar o usuário enquanto o narcotráfico se fortalece com a repressão às drogas. Continuaremos a produzir e perpetuar violência enquanto não pudermos desmistificar esse imaginário. Desconstruir essas ideias pré-concebidas. Desnudar a nossa humanidade. Enfim, eu falei mais aqui neste texto sobre a experiência do Uruguay com a legalização. E sobre a falência do sistema carcerário brasileiro e do fracasso da guerra às drogas aqui. […]