O ano se inicia tal como a maior parte das pessoas daquele país no Hemisfério Norte: branco e gélido. Apesar da temperatura negativa do ar, naquela manhã o frio não parece estar tão impiedoso quanto nos últimos dias. Decido calçar minhas botas de inverno e encarar pela primeira vez a sensação de pisar na neve em Nuremberg, na Bavaria Germânica. E, olha só, quem diria: É macia. Observo, como uma criança de olhos esbugalhados e dedo na boca que vê algo pela primeira vez, os flocos cristalinos que caem fragilmente do céu e encontram os galhos das árvores despidas. O fenômeno provoca um ruído único, delicado. Um deles cai em minha mão. Eu olho de perto e constato: é perfeito. Meus sentidos estão agitados e eu arrepio. Ouço o silêncio do lugar deserto. Nívea calmaria. Sem pensar, a boca abre e a língua se desenrola e encontra o céu. A neve, afinal, tem mesmo gosto de neve.

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Continuo pela trilha do bosque e quase me perco. O caminho parece tão diferente quando se torna deserto branco. Sigo de encontro ao parque Marienbergpark, onde normalmente os cachorros peludões parecem sempre dominar os gramados. Dessa vez, crianças com seus trenós de madeira e plástico comandam os pequenos morros, deslizando em alta velocidade. Gritam, brigam, gargalham. Descem e sobem sem descanso.

Enquanto isso, medonhos bonecos de neve assustam involuntariamente os passantes desatentos – ou seja, eu – com seus braços de galhos secos, narizes de cenoura e olhares fixantes e jeito estático.  A cabeça de um deles, debilmente simpática, mantém-se em cima de um tronco. Resignado, parece não ligar para o fato de que parte dele está faltando.

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Foto: Alessandra Marimon

Na entrada, o parquinho gracioso, feito de madeira nobre, é um fantasma. Em um fim de semana comum ele estaria lotado da meninada de cabeleira majoritariamente loira; mas agora, coberto por um grosso véu branco, serve apenas como refúgio de alguns pequenos animais. Uma placa de aviso do que não é permitido dentro do local infantil – porque o alemão quase não é viciado em regras… – balança debilmente conforme o vento resvala. Parece estar cansada de ficar parada ali, sendo placa autoritária o dia inteiro. Quem sabe um dia se rebela e sai voando.

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Foto: Alessandra Marimon

“Nossa, parece que eu tô em Fargo”. Exploro a paisagem-vácuo coberta pelos fractais infinitos na esperança de talvez encontrar uma mala cheia de dinheiro escondida naquelas camadas geladas. E até fico com medo de que algum psicopata serial killer de franjinha ou dois atiradores de aluguel, um surdo inclusive, possam estar me observando atrás das árvores. Bom, talvez seja melhor isso do que pensar no Jack Nicholson correndo atrás de mim com um machado na mão depois de passar meses em um hotel abandonado no meio de uma nevasca. Mas acho que eu ia gostar mesmo era de esbarrar com a Eli, a criança vampira sueca do Let the Right One In. OK, ok… sem dúvida a mais simpática e fodona de todas é a Elsa, por que quem é que não gostaria de ter um poder daqueles? A neve também inspira a cultura pop.

Let it go, let it go…

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Foto: Alessandra Marimon

Os corvos. São animais que me encantam desde minha adolescência. Quando descobri que naquele lugar os cachorros correm atrás de corvos (fodões), e não de pombos (nojentos), passei a ser frequentadora assídua. Assim que cheguei na cidade, no início do Outono, podia encontrar um bando desses pássaros pretos, envoltos em mitos e superstições. Agora estavam isolados. E eu nem preciso dizer que parecia coisa de Game of Thrones.

Mas um pulava daqui, outro pulava ali, roçando o bico sobre a neve em busca de alimento. Não é porque eles se adaptam facilmente e podem comer praticamente de tudo – desde sementes até carniça – que o inverno não seja um período difícil pra eles. Depois, durante outras andanças em outros cantos, vi a carcaça de dois deles pendendo ao lado de um salgueiro… possivelmente não aguentaram a madrugada gelada e morreram de frio.

Porque a gente reclama do calorão de Mato Grosso, mas o frio mata, é cruel e impiedoso. Muito mais do que a gente pensa. Nem tudo é glamour nas terras gélidas.

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Mas continuando…

Percebo um avô puxando a netinha no trenó com o auxílio de uma corda. Num gesto, a menininha tira os cachos do rosto, aponta pro alto e choraminga: “Vovô, por que agora as árvores mataram as folhas?”. O velho para, olha pra trás e pergunta: “Por que você acha?”. A testa franze e os olhos cerram e então vem a resposta: “Acho que foi porque Deus mandou”.

A cabeça branca da sabedoria balança de um lado para o outro e, assim, com um sorriso sereno, o vovô gesticula explicando de forma lúdica e didática que é no Outono que as árvores se preparam para esse frio extremo, do Inverno; para guardarem bastante energia, elas precisam se “depilar”. Os olhos dela brilham de fascinação.

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Sigo o meu caminho pra casa com uma sensação estranha no peito. Algo tão comum, tão singelo… é só neve, é só gelo, é só frio… mas pra gente que é poeta d’alma, sente como uma experiência pra toda vida. Uma troca de sensações entre a natureza e a sociedade. E antes de chegar à porta, eu preciso parar mais uma vez e fechar os olhos. Mais uma vez observo, como uma criança de olhos esbugalhados e dedo na boca que vê algo primeira vez, os flocos cristalinos que caem fragilmente do céu e encontram os galhos das árvores despidas. Encho os pulmões e solto um bafo gelado. Meu corpo está quente. E eu me sinto mais viva.

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Jornalista mato-grossense formada pela UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) e aluna de mestrado no programa de Divulgação Científica e Cultural da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

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