Por Luiz Renato de Souza Pinto*

Desde criança ouvia os clássicos que meus pais adoravam e ficava me imaginando naqueles cenários. Muitos brotavam das letras de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira; mais tarde de Sá & Guarabira (Rodrix conheci depois), Ednardo, Belchior, Fagner, Zé Ramalho e tantos outros. Lembro-me do Projeto Pixinguinha em sua primeira edição em Cuiabá, 1981, e que trouxe vários shows de gritante qualidade. Um deles foi Vital Farias, Geraldo Azevedo e Elba Ramalho – esta, recém-saída da Ópera do Malandro e iniciando sua carreira musical. Eram cinco espetáculos, de segunda a sexta e vi vários deles as cinco. Egberto Gismonti e Marlui Miranda foi outro, espetacular. As apresentações aconteceram no Liceu Cuiabano e foram um sucesso estupendo.

maxresdefaultHá poucos dias estive em Afogados da Ingazeira, sertão pernambucano, e deparei-me com a degradação de uma dessas belas paisagens que sonhava em menino. Gonzagão cantava: “Riacho do Navio, corre pro Pajéu, o rio Pajeú vai despejar no São Francisco, o rio São Francisco vai bater no meio do mar…” Está seco o Pajeú de que ouvira falar. Adultos que brincaram às margens daquele rio hoje lamentam. Animais mortos à beira das estradas atestam o sofrimento ao longo das rodovias. Até mesmo dentro de áreas urbanas se veem animais mortos e certa indiferença repousa no olhar de muitos transeuntes. Goles de água são disputados pela animália enquanto um caminhão pipa em Serra Talhada está custando por volta de R$ 70,00. Minha conta é R$ 54,91 e eu achava caro.

Viajei por vinte e quatro dias pelo Nordeste. Não o do cartão postal, o das praias paradisíacas. Mas sim o do sertão, com suas nuances coloridas e a tez curtida pelo sol vibrante. Passei pelo Maranhão, Ceará e Pernambuco. Claro que vi o mar, mas ele cantando lá e eu cá, em minha seca, buscando o sertão “dentro da gente”, como dizia Guimarães Rosa. São Luis, Alcântara e Caxias no Maranhão, uma semana desfrutando de novas geografias. Abismado pela exuberante cultura quilombola que impera em todo o estado. Alcântara realmente parou no tempo e agora estou apto a ler o épico A noite sobre Alcântara, de Josué Montelo para me transportar no tempo e espaço.

No Ceará visitei Assaré, Nova Olinda, Santana do Cariri e Crato. Juazeiro do Norte foi apenas passagem, ficou para a próxima investida. Na cidade do poeta visitei o Memorial Patativa, declamei para um de seus filhos e neto, ouvi também suas declamatórias. Vi o mar em São Luis e Alcântara, no Maranhão; em Recife e Olinda, Pernambuco, mas banhei-me apenas no velho Chico antes de voltar para o meu rincão. Clara Cavalcanti havia me intimidado a visitar Nova Olinda, Santana do Cariri e Barbalha, ao redor do Crato, pedacinho do Ceará. Na primeira fui conhecer Espedito Seleiro, artesão em couro de uma família que atravessa cinco gerações. Seu pai confeccionou uma sandália para o capitão Virgulino. O artefato era especial, tinha as extremidades quadradas, a fim de confundir a volante sem saber para que lado caminhava.

sddefault
Duo Ell Gênio

Pois fiquei três dias na cidade esperando a encomenda ficar pronta para que pudesse trazer um exemplar. Também fiz questão de adquirir um CD de Assisão, com seu xaxado de Serra Talhada a fim de relembrar ao longo deste ano todo o ritmo contagiante do cangaço. Eternizado pelos Cabras de Lampião – grupo local. Até uma cuiabana encontrei por lá, trabalhando na Casa da Cultura e atuando como atriz junto aos cabras de Lampião. Lançando o livro Duplo Sentido em Olinda-PE com Carlos Barros, pude ser agraciado com a belíssima música do Duo Ell Gênio, genuíno jazz tupiniquim com sotaque pernambucano.

Mas foi de Ouricuri que sopraram as efervescências poéticas e rítmicas que marcaram decisivamente a viagem. Ramiro, Maurício Menezes, Júnior Baladeira e os competentes João Emídio, Mariano Carvalho, Ébano e convidados de Jose embalaram noites inesquecíveis, reproduzidas dias depois em Petrolina. Eu e Carlos Barros fomos envolvidos pelo que podia haver de melhor em termos de receptividade. Graças ao empenho de Aline Coriolano, Jose e Terezinha: vida longa para as três mosqueteiras!

Ouricuri tem feria livre diariamente, mas aos sábados é que o encantamento pelas cores a granel visita os olhares atentos dos consumidores. Muitos desfrutam de um tira-gosto de buteco enquanto alguma cantoria se aproxima. Ceará, de Iguatu-CE e Romeu, de Petrolina-PE nos acompanharam desde o programa de Azarias na Rádio Voluntários. Mas estivemos também com Kelvis; com Ramiro e Juarez na Cultura FM. De Ceará ficou-me um CD com outro parceiro, Riso do Norte. E estou aqui a lembrar dos umabuzeiros carregados da chácara do pai do Ari; e as seriguelas da hora que me cercavam pelas ruas da feira.

chico-pedrosa
Chico Pedrosa

E depois foi Petrolina. Do Sebo Rebuliço trouxe a voz em livro e CD de Chico Pedrosa. Desde os tempos do Trovadorismo português que, em língua portuguesa, se pensa a relação entre a poesia e a música; recentemente a discussão se afunila em música e canção; cantiga e poema, faces de um mesmo dilema traduzido em linguagem. Chico Pedrosa, explorando o mote do poeta Alexandre Morais, “A orquestra da vida é a cultura e o poeta é seu mestre de harmonia”, diz que:

Apesar das diversificações

Percorrer esse mundo dá prazer,

Palmilhar as veredas do saber

Estimula e renova as emoções,

Preservar os valores de expressões

É bonito e faz bem a quem lhes cria,

Quando sobre cultura e poesia

Se ocupa escrevendo a partitura;

A orquestra da vida é a cultura

E o poeta é seu mestre de harmonia.

maxresdefault-1
João Emídio

O Coração Sonhador de João Emídio tem embalado meus dias e noites enquanto a viagem vai se transformando em lembranças suaves. Sigo sua Aura. Riacho Vadio vai preenchendo meu vazio repleto de ausências. Na melodia “frescorosa” do sertão vou banhando a imaginação. Estrada Longa. Agora é contar as horas, os dias, os meses para rever as reses no campo aberto do banhado e tanger o gado novo, admirável, para a cancela em busca do alimento que não cai no cocho.

A poeira e a estrada. Poesia na guaiaca do gaúcho, no alforje do matuto, na cabeça do peão. A solidão dos aflitos. Fui de avião de Cuiabá a São Luis-MA e depois mais ou menos 3.000 km por via terrestre – carro e ônibus. Saudade companheira. A volta de asa dura foi de Petrolina a Brasília e de lá para Cuiabá. Revoada. Olho para trás e Tropeçando na saudade deparo-me com O mundo da imaginação. O Coração sonhador já está de olho no mapa novamente. A Morena Maria de todos os nomes e credos alivia a distância. O Nordeste é quase ali. Dessa viagem sobrou uma única certeza: Há algo no ar além dos aviões de carreira! Nós dois.

*Luiz Renato de Souza Pinto é ator, professor, poeta, escritor 
 e gosta de viajar pelo Brasil.
Compartilhe!
Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

Deixe um comentário

Please enter your comment!
Please enter your name here