A água goteja insistente e incessante. O palco é uma lona no chão. Quatro cadeiras em cada canto. Velas acesas. Potes cheios d’água. A goteira gotejante marca o compasso do tempo de cada um. Cada personagem que emerge de suas águas profundas para dar voz a uma narrativa que pode ser de todos. Na superfície do ser o encontro de memórias que se afogam. O espetáculo Das Águas da Cia Carona de Teatro revolve sentimentos adormecidos no conforto da cama quente enquanto a goteira pinga, pinga, pinga. Até que nos vemos inundados por sua força. E acordamos assustados, de sobressalto.

O rádio rompe com o primeiro silêncio e notícias sobre enchentes “Mais uma vez” enchem nossos ouvidos.

É o pai que procura a filha, a filha que procura pela mãe, a chuva que não para de chover, dias e dias em que seu cair é insistente e incessante. Eles rompem o silêncio com gritos, com o escuro, com as velas. Os quatro atores tecem a narrativa e ecoam histórias que podem ser de qualquer um. Em algum momento entre esses gritos, um sonoro Fora Temer.

As histórias continuam, as lágrimas molham o chão já molhado com a água que pingo a pingo inunda o sentido da trama. Guarda-chuvas se abrem. Mas não importa mais. O que se sente é que não importa quando, não importa onde, tudo muda. “A gente tenta seguir uma linha, mas a vida vem e embaralha tudo”. Aquilo que pensamos ser eterno em nós é tão passageiro quanto a chuva.

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Foto Leo Kufner

Eles continuam e você percebe que o dia amanhece normalmente, antes de ser chuva. As pessoas vão trabalhar, tomam café, compram o pão, passeiam com o cachorro, pagam suas contas, enfrentam a fila do banco, correm no parque, levam os filhos para a escola. E de repente, não mais que de repente, o céu fica cinza. E a chuva desce. Não mais que de repente, você está ilhado. Longe de todos a quem ama, sem poder se comunicar e saber como estão, se estão a salvo, se a chuva os ilhou também, ou se os levou.

E tentam convencer a si próprios de que às vezes, é melhor que a chuva leve e lave. Os corpos se lançam, é como se a água os arrastasse. Eles se jogam entre si, lanternas rompem com o escuro, entre as vozes, os gritos e o movimento dos corpos, a sensação é de sermos todos arrastados por um redemoinho. Um redemoinho de água.

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Foto Daniel Zimmermann

Novamente silêncio. Corpos estendidos com velas nas mãos. Corpos que se carregam, que tentam encontrar os seus para chorar suas partidas, que precisam saber para poder continuar e carregar a maior dor do mundo. O sentimento de impotência. “Toda vez é assim e ninguém faz nada”. Esse cenário não é só de um lugar, mas de tantos. Tantas famílias, tantos lares que se perderam para a força das águas, quando o rio invade tudo e leva o que estiver em seu caminho. “A vida é uma piscina de merda”. “Todos vamos morrer, afogados”.

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Foto João Paulo da Silveira

E penso na sincronicidade das coisas, visto que um dos nossos municípios produtores, Campo Novo, está debaixo d’água. É a natureza que se revolta ou somos nós que infligimos a sua dor através da constante intervenção humana em seus leitos, rios, águas, terras? A chuva cai, acaba com plantações, invade casas, leva vidas. “Mais uma vez”. Lá em Campo Novo, o bairro alagado é conhecido como “Piscinão”. É por onde a água escoa. As vidas são arrastadas, levadas, por que é difícil pensar no outro, reconhecê-lo?

Alguns ficam e choram seus mortos. Mas essa história não acaba aqui, não acaba agora. Ela continua com a próxima chuva, insistente, incessante.

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