“Você já sentiu como se sua vida tivesse se transformado em algo que você nunca quis?”.
Com esta premissa, Tom Ford estiliza o arrependimento, a dor e a vingança em seu novo filme, “Animais Noturnos”. Conhecido no mundo das passarelas por seu trabalho como estilista, Ford experimenta pela segunda vez seu olhar estético no cinema – seu primeiro trabalho sendo o premiado “Direito de Amar” de 2009 – e constrói com meticulosa precisão, imagens poderosas e irretocáveis.
Inspirado no romance de Austin Wright, “Tony e Susan”, a história narra os infortúnios de Susan Morrow, curadora de arte que inesperadamente, recebe de seu ex-marido – com quem não mantinha contato há mais de vinte anos – o manuscrito de seu novo livro, enigmaticamente dedicado à ela. Vivendo uma atual crise financeira e amorosa, Susan aproveita o fim de semana sozinha para entregar-se à leitura. É nas páginas do livro de seu ex-marido, que Susan desperta lembranças do passado e de seu antigo casamento. O livro, intitulado “Animais Noturnos” – uma referência direta à Susan, que ganhara essa alcunha do ex-marido devido ao seu problema de insônia – conta a história de Tony, um professor de matemática que viaja com a família, quando se vê encurralado por um grupo de caipiras violentos na estrada e teme pela integridade de sua mulher e sua filha.
A narrativa, que transita entre três linhas do tempo – o presente, o livro e o passado – constrói seu significado através do trabalho de montagem de Joan Sobel. A história repleta de dor e violência do livro levam Susan à momentos de dor e violência que definiram sua relação com seu ex-marido. Aos poucos, somos mergulhados na história de Tony e compreendemos melhor a dedicatória à Susan. Num ritmo de edição que respeita o existir do sentimento em cada take, montamos aos poucos a personagem de Susan, competentemente representada por Amy Adams.
Antes de tudo um filme de personagem, “Animais Noturnos” tem sua maior preocupação na construção de uma Susan cínica e determinada, uma mulher que alcançara seus objetivos mas que agora se encontra num mundo plástico e irreal. O trabalho do cinematógrafo Seamus Mcgarvey atrelado com a visão detalhista de Ford, permeia as galerias de arte e as mansões luxuosas com uma perfeição quase clínica, se revezando entre momentos de brancos estonteantes, que dão luz às deformidades de um universo artificial e momentos soturnos, recheados de cores fortes e escuras, tornando ainda mais atraente para o espectador a fotografia granulada e quente da história de Tony, ou a paleta em tons de terra do passado conflituoso. Aqui Ford afirma seu domínio em conduzir o público numa história intrigante visual e psicologicamente.
Jake Gyllenhall em mais uma brilhante atuação, onde se divide entre o escritor e o personagem Tony, entrega camadas de desespero e apreensão numa imagem revoltosa de um homem arruinado por uma única decisão em sua vida. Acompanhado do inescrupuloso xerife Bobby Andes – Michael Shannon, que rouba a cena e concorre ao oscar de melhor ator coadjuvante pelo papel – Tony irá até as últimas consequências para trazer à justiça aqueles que aterrorizaram sua família. Concluindo o elenco impecável, Aaron Taylor Johnson é o chefe do bando de caipiras, em uma atuação tão convincente que torna impossível não odiar seu personagem.
Atraída pelo desfecho da intrigante trajetória de Tony, Susan encontra no livro a emoção e o escape que faltavam em sua vida. Arrependida das decisões tomadas no passado, Susan se relaciona com o arrependimento de Tony, que nada mais é do que uma imagem de Edward, seu ex marido. Todos os personagens e seus sentimentos se tornam um só enquanto Susan é a leitora, espectadora e protagonista de um enorme exercício estético para tentar transformar arrependimento em cinema. Abel Korzeniowski embala o filme em acordes melancólicos e envolventes, definindo o ritmo de uma história que à primeira vista parece não levar a lugar algum.
Em suas duas horas de duração, o filme entrega um instigante suspense e um denso drama na história de Susan e Tony, mas tem dividido espectadores com seu enigmático desfecho. O final, talvez silencioso demais para um filme tão íntimo e tão intenso em suas emoções, obriga o espectador a ler nas entrelinhas e mergulhar de cabeça na história dentro da história. Num filme onde o visual está constantemente berrando suas intenções na tela, a cena de encerramento – que depende apenas da sutileza de Amy Adams em entregar seu cruel veredicto – parece destoar do resto à primeira vista, mas carrega a verdade crua por trás de uma mórbida vingança, mais significativa que qualquer elemento visual. Não existe caminho de volta, não existe atitude que conserte os erros do passado, não existe a luz do dia para os animais noturnos.
Discutindo também a “arte pela arte” e o que é necessário para definir um artista, o novo exercício estético de Ford visita diversas questões quanto a superficialidade do mundo da arte, a essência do belo e do provocativo, e o quão egoísta é a personalidade do artista. Preocupado em expressar sua ideia ao mundo, aquele quem cria arte não necessariamente cria o significado de sua arte. Evocando estes conceitos, Ford não se preocupa em fechar pontas soltas, ou responder as questões que levanta, mas em expressar os sentimentos que estas questões nos incitam. Inquietude, ansiedade, medo. Seus personagens, arquétipos escritos em um roteiro, que por sua vez é escrito a partir de um livro, são neste caso, agentes da emoção. Sua função é nos fazer experimentar Susan em toda sua complexidade.
Sua complexidade é mérito também de Amy Adams, atriz negligenciada pelo Oscars este ano apesar de duas grandiosas atuações, tanto em “Animais Noturnos”, quanto em “A Chegada” de Denis Villeneuve. Susan é toda postura e olhar, e Amy brilha tanto no papel da amargurada e endurecida mulher, quanto na jovem apaixonada e otimista do passado. É ela quem trás veracidade à trama e valida as emoções em cena, transformando Susan em algo além do personagem criado por Ford. Susan existe, sofre, e está consumida por seus sentimentos.
Seja nas grandiosas atuações, no primor estético, na fidelidade ao material original, ou na complexidade da construção da trama, “Animais Noturnos” já se faz valer como experiência cinematográfica satisfatória. É na evolução do domínio cinematográfico de Ford e da profundidade de suas narrativas que o filme realmente demonstra seu valor. Competente ao conhecer seu lugar e fazer bom uso do mesmo, a história dramática de suspense e violência se afirma não só como uma cativante experiência, mas também como uma refinada obra de arte.
muito bem escrito o artigo. despertou uma vontade imensa de ver o filme.
Ameei Thales! Vc escreve muito bem * -* Achei esse filme legal… daria nota 9 pra ele… Mas a sua crítica é nota 10! Queria ver uma crítica sua sobre La La Land.