Por Luiz Renato de Souza Pinto*

Amparado intelectualmente por minha amiga Maurília Valderez orbitei por cerca de um ano a obra de Antonio Sodré de Souza Neto, com vistas a um projeto de Pós-Doutorado em Poesia e Filosofia, ideia abortada após mudança radical em meus projetos acadêmicos. Depois de ter escaneado mais de duas mil páginas de seus cadernos durante um período de três meses, recolhi essas pérolas a fim de priorizar outras áreas de conhecimento, sabendo que virá à tona essa demanda em momento de melhor planejamento e condições para tal envergadura. E já se foram quase três anos dessa decisão.

Há exatos quatro anos (07/11/2012) tive a oportunidade de conhecer um poeta que, em face de uma visita a Cuiabá, a convite do SESC Arsenal, tive a felicidade de apresentá-lo à comunidade cultural de nossa cidade: Antonio Cícero. Letrista de várias músicas gravadas por sua irmã, Marina Lima, o poeta e estudioso tem várias obras publicadas, dentre as quais levei para que autografasse PORVENTURA, livro de poemas e Poesia e Filosofia, ensaios que deliciam o leitor com uma abordagem extremamente acessível.

Seus ensaios abordam aspectos diacrônicos, como também olhares sincrônicos da produção contemporânea. Questionamentos estéticos entremeados de abordagens filosóficas em que a concretude e a abstração são costuradas por linguagem híbrida que acomete a essência poética de quem lê e de quem escreve. Ao afirmar que o verso ainda não é poesia, Cicero enfatiza que:

A questão não é saber se alguém pode tanto ser poeta quanto filósofo, mas sim se um texto pode ser simultaneamente – e no mesmo trecho – uma contribuição original ao pensamento filosófico e um bom poema.

É certo que os filósofos mencionados escreveram versos, mas escrever versos não é necessariamente escrever poemas. Pensa-se comumente que a palavra “poesia” é antônima de “prosa”. Trata-se de um equívoco. “Poesia” não tem antônimo em português. Se quisermos falar do oposto à poesia ou poema, temos que usar algo como as expressões “não-poesia” e “não-poema”.

É a palavra “verso” que é antônima da palavra “prosa”. Essa oposição pode ser esclarecida etimologicamente. “Prosa”, do vocábulo latino “prorsus” e, em última, de “provorsus” que quer dizer “em frente”, “em linha reta”, é o discurso que segue em frente, sem retornar. “Verso”, do vocábulo latino “versus”, particípio passado substantivado de “vertere”, que quer dizer “voltar, “retornar”, é o discurso que retorna (CÍCERO, 2012, p. 37).

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Antonio Cícero

Em que pese a erudição do renomado teórico e artífice da linguagem, parece-me não comprometer a concepção do texto e a comunicabilidade que sua escrita traz. Em PORVENTURA, por sua vez, o lirismo transparece e destaco um poema dedicado à recém-falecida filha do grande poeta Vinicius de Moraes, Suzana Moraes, intitulado Longe:

A chuva forte, o resfriado

real ou fingido, e eis-me livre

da escola e solto no meu quarto,

nos lençóis, nos mares de Chipre

ou no salão de Ana Pavlovna

ou no de Alcínoo, nas cavernas

de Barabar ou sob a abóbada

de Xanadu; perplexo em Tebas

e pelas veredas ambíguas

do sertão do corpo da língua,

cada vez mais longe de escolas

e de peladas e de bolas

e de promessas de futuros,

é mesmo errático meu rumo.

(CICERO, 2012, p. 77)

A conversa com Cícero se deu no Salão Social do SESC e foi acompanhada por pequena plateia que se ateve com entusiasmo às considerações do poeta/crítico. Quatro anos se passaram e muito poema ainda vai circular por debaixo dessa ponte que liga a poesia à filosofia, da qual Antonio Sodré era tributário. Sua obra não deixa dúvidas quanto a isso, como atestam os poemas abaixo, que analisei em artigo apresentado em congresso do Grupo de estudos Linguísticos e Literários do Centro-Oeste (GELCO), realizado em agosto de 2014 na cidade de Goiás velho-GO e publicado posteriormente nos anais do evento.

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Antonio Sodré

A lentidão dos sentidos…

Tartaruga no meu jeito de ser…

Ó! Como viver correndo,

Se a eternidade é estática?!!!


 

Minha caneta é uma

Pequena espada…

Um golpe a cada

palavra

Que traço no poema

Recortando sonhos…


 

Sábado à noite!

Os sinos da catedral

Aceitam o silêncio


 

Uma pétala

Que cai

Do flamboyant

Virando

Tapet

Pro

Passant


 

Depois que puseram asfalto

na minha rua

nunca mais imprimi  os meus

passos no chão…


 

Esta comunicação visou apresentar cinco poemas de Antonio Sodré, falecido em 2011, apontando para a temática de sua poética. Relações de poder, religiosidade, modernidade, desenvolvimentismo e metalinguagem. Essas cinco pontas fazem de Sodré uma estrela que brilha na cultura de Mato Grosso. Vitor Manuel de Aguiar e Silva alerta-nos para as dificuldades da empreitada de se “pretender fixar as linhas de força mais profundas e mais secretas do processo criador”. Carlos Felipe Moisés nos lembra que “Poesia sempre foi e continua a ser, também, massa sonora, qualidade acústica, e não há evidência de que esse atributo tenha deixado de existir, quando a escrita passou a prevalecer”.

Alfredo Bosi, “Qualquer hipótese que se inspire na motivação da palavra deverá levar em conta essa intimidade da produção dos sons com a matéria sensível do corpo que os emite”. Antonio Sodré deixa uma obra variada, base para estudos de abrangências não delimitadas totalmente por signos verbais ou relações extemporâneas de qualquer ideologia.

A obra de Antonio dormita em sono profundo, mas sempre que volvemos essa massa conseguimos extrair de lá concretudes que nos estremecem as bases. A poesia pede passagem e não respeita interditos de nenhuma ordem!


 

REFERÊNCIAS

AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel. Teoria da Literatura. Lisboa: Almedina, 1965.

BOSI, Alfredo. O ser e o Tempo da Poesia. São Paulo: Cultrix, 1977.

CICERO, Antonio. PORVENTURA. Rio de Janeiro: Record, 2012.

CICERO, Antonio. Poesia e Filosofia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

MOISÉS, Carlos Felipe. Poesia & Utopia. Sobre a função da poesia e do poeta. São Paulo: Escrituras Editora, 2007.

*Luiz Renato de Souza Pinto, é professor, escritor, poeta e ator performático, 
foi parceiro de Antonio Sodré e outros comparsas no Caximir.
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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

2 Comentários

  1. Excelente texto, Luiz Renato. Isto prá mim é que é a verdadeira crítica literária ( ou filosófica?), livre de achismos e de visões pré-concebidas. Uma crítica que desvela, revela, amplia o olhar, vai lá no fundo sem medo e de lá nos traz a pedra cristalina ( para ser avaliada). Uma crítica que não diria didática mas pedagógica. A gente cresce por dentro e desabrocha ao longo da narrativa. É um texto que anda no arame, na corda bamba a nos provocar: – aventure-se. Conheça e conheça-se à procura da essência poética de Antonio Sodré. Que bom correr esse risco, esse perigo, contigo Luiz Renato e em tão boas companhias:Antonio Cícero, Vitor Manuel Aguiar e Silva, Alfredo Bosi e Carlos Felipe Moisés.

    Minha caneta é uma

    Pequena espada…

    Um golpe a cada

    palavra

    Que traço no poema

    Recortando sonhos…

    Que saudades, Sodrezinho! Como bem disse Caio Mattoso tudo que vem de voce agora somos nós

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