*Por Alessandra Marimon
O boicote à loja de roupas C&A, promovido sem sucesso pela cantora gospel Ana Paula Valadão é uma das provas mais recentes de que a tal da “ideologia de gênero” não é, afinal, uma ideologia coisa nenhuma. Na propaganda da empresa, que tanto chocou a cantora, jovens de ambos os sexos aparecem com as roupas “trocadas”, ou seja, os homens vestem roupas consideradas femininas e as mulheres exibem um vestuário “masculino”. Mas até quando vale a pena categorizarmos as coisas como X ou Y?
Valadão apenas tem ajudado a reforçar o que diversos estudiosos vêm confirmando nos últimos anos: a chamada geração Z, pessoas nascidas a partir de 1995, enxerga que os conceitos de masculino e feminino servem apenas para reprimir e não correspondem à realidade atual. As diversidades socioculturais tornam-se mais válidas e significativas ao passo que a mentalidade dos jovens se modifica. O binarismo, o preto ou branco, perde espaço para a “geração dos mil gêneros” e o ser diferente se expressa inclusive no modo de se vestir.
História repressora
Durante os primeiros anos da era vitoriana, de 1837 até 1860, as sociedades ocidentais viveram um período de extremo puritanismo e eram as mulheres quem mais sofriam as consequências. O espartilho era indispensável, o que hoje é entendido como não menos do que um instrumento de tortura – inclusive, há relatos de mulheres que tiveram suas costelas perfuradas ou morreram sufocadas pelo uso contínuo desse acessório. Elas também usavam camadas e mais camadas de corpetes, roupas pesadíssimas, armações de saia feitas de metal, vestidos de 20 metros e poderiam carregar até 15 kg de roupas. Uma verdadeira prisão para o corpo feminino.
A partir dos anos 20, as mulheres se libertaram de várias formas de aprisionamento. Elas já podiam usufruir de cabelos curtos, roupas largas que não marcavam a cintura e vestidos soltos e acima do joelho. Essa alteração da moda foi marcada por uma era de conquistas de direitos – como o voto feminino – e de ascensão das artes, como o jazz e o cinema. O vestuário, nessa época, misturou diversos elementos considerados masculinos e femininos. Tal mentalidade ajudou a abrir espaços para revoluções culturais e sexuais, como as ocorridas nas décadas de 60 e 70, com a ascensão da contracultura e do surgimento da pílula anticoncepcional, por exemplo.
A moda na geração Z
A recente propaganda da C&A não deixa de ser uma campanha em prol do consumo capitalista, no entanto, ela reflete uma realidade. Essa nova geração de “nativos digitais” – termo que até soa como algo velho – imergiu em um mundo onde a tecnologia tomou proporções inimagináveis até poucas décadas atrás. Para eles, o altruísmo fala mais alto do que o egoísmo, o narcisismo já não predomina e a obsessão pelo consumismo vem diminuindo. São esses jovens que estão ditando um novo padrão de comportamento. E as marcas de moda querem – e precisam! – se adaptar.
A ideia agora é ser autossuficiente, participar dos processos de fabricação, é de empreender, de ser realista e preocupado com o meio ambiente e, inclusive, de acabar com estereótipos de gênero, classe e cor. Diversidade é, inclusive, uma das características que mais os diferem e que fazem com que toda uma indústria se veja obrigada a se modificar. Nos EUA, os números do censo apontam que até 2020 mais da metade da juventude será parte de um grupo étnico ou racial minoritário.
Mas não para por aí. Se até 1990 a homossexualidade constava na lista internacional de doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS), hoje essa afirmação é totalmente absurda, principalmente diante dos recentes estudos de gênero, encabeçados por sociólogos e filósofos contemporâneos e que ajudaram a reforçar os absurdos da cultura patriarcal. Homossexualidade, bissexualidade e panssexualidade são temas cada vez mais discutidos nas esferas escolares e no dia-a-dia dos adolescentes, cansadas do conservadorismo das gerações anteriores.
E aos poucos a chamada “moda sem gênero” toma forma. O ator e músico Jaden Smith, filho do Will Smith, nasceu em 1998 e mostra que ainda temos muito o que aprender com esses novos conceitos. Imagina só: se há um século as pessoas se escandalizavam com a revolução da Coco Chanel ao introduzir calças ao vestuário feminino, hoje muita gente se revolta com a proposta como a de Jaden de usar saias, vestidos e outras roupas consideradas “de mulher”. Então se você ainda é jovem, mas acha que um homem de vestido é muito estranho, se prepara porque vem muito mais por aí. Mas relaxa, sempre há tempo para mudar a mentalidade.
Só que não podemos esquecer também que vivemos em um mundo capitalista. A indústria, como de praxe, se apropria desse momento para, mais uma vez, puxar a gente para o abismo do consumismo. A grife Louis Vuitton divulgou em janeiro desse ano uma campanha com o ator mirim para uma linha de roupas “femininas” e afirmou que Jaden Smith é “um jovem herói de uma nova geração que cultua a liberdade de estilo”. Por mais que a intenção pareça boa, é também extremamente lucrativa.
Uma opinião extremista, retrógrada e ingênua como a da pastora/cantora gospel não tem mais que ser levada a sério, mas se um dos objetivos atuais é de combater o consumismo promovido principalmente pela indústria fashion, então é bom ficar atento. Não podemos ignorar o fato de que farão de tudo para se apropriarem das novas tendências e, até mesmo, de tentarem modificar comportamentos.
Portanto, cabe à essa geração criar suas próprias tendências e não se deixar levar por padrões de consumo ditados por indústrias que só querem manter o status quo. A revolução já começou e cabe a nós descobrirmos uma maneira de mantê-la, seja por uma moda própria e autêntica, seja por um debate mais aprofundado das questões de gênero, cor e classe, ou até mesmo por um novo padrão de consumo definido por nós mesmos.
*Alessandra Marimon é jornalista, aspirante a escritora, feminista, gosta de rabiscar desenhos e adora seus três cães salsicha, além de ser devoradora de filmes e séries.