Não pertencer, senão a si mesmo e ao mundo.
Ser líquido e adaptável.
Resiliência_substantivo feminino:
1 – fis: propriedade que alguns corpos apresentam de retornar à forma original após terem sido submetidos a uma deformação elástica.
Ele olha para um espelho d’água com oito pedras nas mãos e procura pelo próprio reflexo enquanto ataca a imagem de si mesmo, fragmentando qualquer traço de pertencimento ou fragmento de identificação. Sente-se em casa, desde que dentro de si mesmo, porque em qualquer lugar do mundo os latidos e as sirenes se equilibram na navalha do silêncio, antes do nascer do dia.
Um acúmulo absurdo de memórias, coisas e pessoas se revela quando a primeira centelha da mudança se acende. Pensa nos amigos que cultivou, nas relações profissionais, nos móveis que comprou em promoção e nos lugares que lembram pessoas. Encerrar ciclos, em grande parte, é fazer faxina. Deixar pra trás, nas estradas e na distância, as lembranças viscosas que se agarram aos tornozelos e lembrar na hora de Elis Regina, já que no fim das contas o passado é uma roupa que já não serve mais.
Pensava assim não por escolha, mas por obrigação. Perder um irmão é despedaçar-se. É carregar ex-futuros como areia nos bolsos furados e imaginar realidades paralelas onde o sonho se realiza, de alguma forma.
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Ela é alta e usa batom vermelho. Seus cílios se abrem como pétalas a cada raio de luz que atravessa a cortina do quarto. Gosta de cachorros e de pedalar, e detesta queijo. Mora em alguma cidade distante da sua, e se veem sempre no Natal. Ela lhe dá um perfume diferente a cada aniversário.
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Se a fantasia é a espuma dos dias – salve Boris Vian – a loucura deve ser o limo das lembranças que escorrem, pensa num instante. E a vontade de limpar esse limo o faz sentir uma culpa corrosiva, porque é como passar uma borracha em si mesmo. É se desfazer do que se faz. Mas tem 22 anos e os ombros curvados pelo peso dessa long distance trip que alguns preferem chamar de vida. Desfazer-se de si, em certa medida, é fundamental. Desprender-se também do modus operandi, dos padrões de vida idiotas e irreais que se retroalimentam rumo ao nada, senão aos parcos interesses de meia dúzia de doentes megalomaníacos. Vive então pelo autoconhecimento (que passa pelo conhecimento do outro) e se esbalda na alegria alheia, mesmo quando a sua já não existe.
E tal qual um andarilho, coleciona rostos e sensações encontradas pelo caminho, porque tudo isso, afinal, é o mundo. Pedras opacas, rostos e sensações.