Nic Cardeal

Pelo que me lembro, meu pai sempre foi um homem de poucas palavras. Era quase um ermitão. Cursou somente o ensino fundamental, mas lia muito, enquanto ainda podia. Adorava ler livros sobre saúde, alimentação natural, agricultura, plantas. Durante um certo período de sua vida acordava muito cedinho para praticar yoga e os ritos tibetanos. Gostava de fazer jejuns, preparava sua própria comida, sucos e ‘saudáveis misturas diferentes’ e, por isso mesmo, tinha na casa uma cozinha só sua, onde gostava de criar suas ‘gororobas’, como dizia minha mãe… Por alguns anos deixou de comer carne, voltando a fazê-lo somente quando já estava bem idoso.

O pai da escritora Nic Cardeal

Lembro de suas ferramentas de trabalho, muito antigas: uma bússola, um prumo, um jogo de balizas e uma trena, ele era agrimensor – agri = campo; mensura = medir – ou seja, era um medidor dos campos, das terras, superfícies planas, montanhosas, pequenas, grandes, às vezes imensas! Passava dias, às vezes semanas, longe de casa, embrenhando-se nas matas, tirando medidas, procurando marcos, anotando em uma pequena caderneta os dados necessários, como graus, larguras e comprimentos, para depois mapear toda a superfície do terreno. Aprendeu a profissão na prática, sem qualquer teoria, acompanhando seu avô em seu trabalho diário. Seus mapas eram verdadeiras obras de arte, com seus esquadros, transferidores, réguas, compassos, lápis, e antigas canetas bico de pena, que molhava nos vidros de nanquim para riscar as linhas sobre o papel vegetal. Depois de retornar do trabalho ‘braçal’, isolava-se em sua mesa, quase que em silenciosa meditação, para elaborar meticulosamente os desenhos do terreno.

Antes de se casar com minha mãe, porém, passou cerca de um ano trabalhando no Rio de Janeiro, exercendo uma atividade totalmente diferente: era projecionista de filmes, trabalhou em um cinema carioca! Sim, ele tinha por função projetar os filmes na tela do cinema! Contava-nos que assistia o mesmo filme várias e várias vezes e, imagino que deve ter até decorado a sequência das cenas, as músicas, os nomes dos atores!
Meu pai gostava de escrever alguns versos, além de cartas para sua namorada, minha mãe.

Memórias da escritora Nic Cardeal sobre seu pai

Era poético o meu pai… Em uma de suas cartas para minha mãe, disse assim:

“(…) Foi na baía da Guanabara, na barca do Rio a Niterói, naqueles poucos vinte minutos de travessia, que eu vi e senti que aquele fôra um grande dia para mim.
Achei tudo tão lindo tão poético; as estrelas no céu a brilhar e o colorido das luzes da cidade refletindo seu brilho nas águas calmas da Guanabara. Foram aqueles poucos minutos que me deram estímulo e coragem para enfrentar aquelas ruas apinhadas de gente apressada (…) Agora, passados alguns anos, mantenho aceso o facho da esperança e continuo firme, porque vejo diante de mim um futuro sorridente e acolhedor.
Pois, agora mais do que nunca, tenho alguém por quem lutar…
E esse alguém, é você Nana”.
(Alfredo)

Em um de seus poemas, também para minha mãe, ele escreveu:

“MOTIVO PARA VIVER
Não fosse você, querida
teria eu adormecido.
Desiludido da vida,
e do mundo já esquecido.
Você trouxe a luz do dia;
trouxe a alegria de viver.
Ainda trouxe o que eu pedia:
Amor – motivo para viver.
Eis aí porque agradeço,
a Deus e Nossa Senhora
para aliviar o meu tropeço
Enviando-a em boa hora.
Dedicado com carinho a Nana – aquela que é para mim parte de minha vida.”
(Alfredo, 26/12/51)

Sua vida, ele mesmo resumiu:
“A história de minha vida
custa pouco ser contada
é só riscar sobre a campa
a bíblia aberta, três balizas
e uma enxada!”
(Alfredo)

As ferramentas de trabalho de Alfredo, pai da escritora Nic Cardeal

Hoje meu pai estaria completando 94 anos, mas se foi do mundo em setembro/2018, aos 91. Com certeza, hoje ele está lá do outro lado do caminho, agora com minha mãe, comemorando as lembranças da viagem de 91 voltas ao redor da Terra!
Feliz História do Alfredo, meu pai!❤

20.05.2021

Nic Cardeal, catarinense radicada em Curitiba/PR, graduada em Direito, é autora de ‘Sede de céu – poemas’ (Penalux, 2019). Já publicou textos em 29 antologias/coletâneas – 24 no Brasil, 4 em Portugal e 1 na Alemanha. É integrante do movimento Mulherio das Letras desde a sua criação em 2016.  

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