Pesquiso autoras brasileiras para ampliar minhas leituras e eis que me deparo com Água Funda (1946), romance de estreia de Ruth Guimarães. O livro chega e imediatamente causa estranhamento pela linguagem. Depois de ler uma autora canadense e um autor japonês, mergulhar nas profundezas das águas literárias de Ruth Guimarães causa arrepio. Ali, naquelas palavras, identifico um Brasil profundo e me inundo com a sabedoria popular, que permeia toda a narrativa.

Entre o misticismo, a “crendice” do povo e a fé arraigada, Ruth Guimarães constrói uma história entrelaçada de personagens que vivem nas terras da fazenda Olhos d’Água, no interior de Minas Gerais. Natural de Cachoeira Paulista (SP), a escritora viveu parte da sua infância em contato com essas duas regiões. É do Vale do Paraíba e do sul de Minas que vem a inspiração para criar o universo do livro com tamanha riqueza de detalhes. São desses locais o contato com tantos “causos” e, especialmente, o linguajar em uma área rural que recebe os primeiros indícios de industrialização.

Exemplar de Água Funda, livro de estreia de Ruth Guimarães

É em meio a esse ambiente que os personagens se encaminham para seus fatídicos destinos, traçados por uma força maior. Caso da Sinhá e de Joca que negam os sinais e vão em direção ao que lhes é reservado. “A gente passa nesta vida, como canoa em água funda. Passa. A água bole um pouco. E depois não fica mais nada”.

Da observação da natureza aos impulsos e instintos de uma comunidade que, apesar dos pesares, se protege e se acolhe, Ruth Guimarães nos traz imagens como esta:

“Já viu seriema, no brejo, em dia calmo? Fica horas apoiada num pé. A gente olha, parece estatueta. Não se mexe. Não se cansa. Não espia pra lá e pra cá. A água parada, embaixo, e o céu, em cima, é tudo um céu. E ela fica, fica, fica… Esqueceu da vida só de ver aquela beleza de verde e de azul e alguma flor pintando brejo. A gente não é assim, não. Se está bem, procura jeito de ficar melhor. Não é da natureza humana ficar parada, olhando coisas paradas.”

A sentença dos ditos populares está presente em todo o livro, como que antecipando aquilo que não se pode evitar: “Ninguém faça que não pague. Esta é a primeira lei da vida. A gente só colhe o que semeia. Às vezes, no meio das plantas, vem o mato. Mas quem joga semente de capim catingueiro no chão, não espere achar mais do que capim catingueiro.”

A escritora Ruth Guimarães – Foto Luciano Dinamarco

Leitora voraz, aos nove anos de idade já havia devorado toda a coleção de Machado de Assis, “sem entender patavina do sentido”, narra ela em entrevista disponível no fim da edição de Água Funda. Órfã, mudou-se para São Paulo, trabalhando em diversos empregos para sustentar os dois irmãos pequenos, enquanto moravam em um quartinho pequeno.

“Em pé de laranja azeda, um galho enxertado dá laranja doce.

Até no mesmo galho, uma fruta não é igualzinha à outra. Essas coisas são assim e não se vai adivinhar por quê.”

Escreveu intensamente: crônicas, contos, poesia, reportagens e críticas literárias para diversos jornais e revistas. Depois do sucesso de Água Funda, publicou Os filhos do medo (1950), ampla pesquisa sobre o diabo e seu papel na tradição popular brasileira. Em 2008, tornou-se a primeira escritora negra eleita para a Academia Paulista de Letras. Faleceu aos 93 anos, em 21 de maio de 2014, em sua cidade natal, Cachoeira Paulista, nos deixando como legado um recorte único da vida caipira no interior dos muitos Brasis.

“Água vem, água vai, fica tudo no mesmo outra vez”.

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

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