Abrem-se as portas. O espetáculo vai começar. A roda da vida gira, gira, gira.
Mas, antes, alguns avisos. Em cartaz há um ano sem qualquer tipo de financiamento público ou privado, a peça se mantém com a alta procura do público, com ingressos esgotados três dias antes da apresentação.
Aqui vamos nós. Novamente. A roda da vida gira, gira, gira. A árvore plantada por Lina Bardi, arquiteta responsável pela obra inovadora e vanguardista do Teatro Oficina (única no mundo, diga-se de passagem), rompeu o concreto da parede, integrando cidade e natureza – proposta primordial de transformar e misturar teatro e rua.
No bairro do Bixiga, é o símbolo da resistência cênica brasileira. Enfrentando os muros que se erguem na maior cidade da América Latina, a especulação imobiliária, a tentativa de retirada do Oficina de seu local para dar lugar ao empreendimento de Sílvio Santos, para conseguir fazer arte no Brasil (quem conhece sabe que isso não é pouca coisa). Tarefas árduas que dão a dimensão da sua potência. O próximo passo é concretizar o projeto do Teatro-Parque do Rio Bixiga.
Avisos encerrados. É hora de começar. Mas não há cortinas que se abaixam e se levantam, não há um palco convencional, não há uma plateia que fica apenas inerte a contemplar as atuações. Não. A proposta é mergulhar no teatro. Essa experiência sensorial, imagética, transcendental.
A roda da vida gira, gira, gira e retoma a história do Brasil. “Infeliz é o país que precisa de heróis”, anuncia Zé Celso, do alto dos seus 80 anos, cuja voz potente ressoa pelo espaço cravando o passo e o compasso do que vem por aí.
Ben Silver, Benedito da Silva, é o protagonista que encarna a mais crua narrativa sobre o país. A aclamada peça que marcou a ditadura militar é reencenada com novos elementos contemporâneos que dão o tom da crítica feroz contra a política, o capitalismo, a exploração da natureza, dos povos originais, dos trabalhadores. Ali, parecem reproduzir as principais manchetes. O conteúdo é baseado na realidade e por isso ainda mais surreal. É a realidade levada aos palcos com sagacidade e jogo de cintura para driblar a crueldade tão marcada nas relações sociais desiguais.
O anjo negro e o demônio conduzem o herói a concretizar as maiores façanhas, dando voltas e mais voltas em uma narrativa que se constrói para se vender e ludibriar. Fake News! A roda da vida gira, gira, gira.
O público atuador revela a essência do que são as artes cênicas. É teatro para se respirar e fazer junto. A troca, a partilha, a comunidade. Rompendo com as lógicas e as amarras de um sistema capitalista que só exaure. Convocado para assumir o seu papel junto aos atores, o público atuador canta, dança, se diverte. Participa. Encena. Brinca. Rompe-se a barreira entre espectador e artista, fazendo jorrar toda a liberdade que existe no universo da arte.
Os símbolos do Brasil estão presentes. A brasilidade evidente. As músicas. O clima tropical. A roda da vida gira, gira, gira e te leva junto para dar uma volta nos capítulos da nossa história: os massacres aos povos indígenas, a escravidão da população negra, o avanço sobre as florestas, o uso desenfreado de venenos, o escracho dos governantes e suas frases que fazem sangrar o povo brasileiro. Respira. É coisa demais para digerir. É um bombardeio de informação durante quase 3 horas de peça.
FAKE NEWS! Ou seria verdade?
Em uma das cenas, Zé Celso levanta a sua taça cheia de vinho e propõe um brinde. Fala que há 40 anos luta com coragem e alegria para manter o Teatro Oficina onde está. A sua casa. Enfrenta os poderosos e o jogo econômico com altivez. Sua voz ressoando pelo espaço. As luzes coloridas o fazem brilhar. Seu discurso é um sopro de esperança, de que é possível resistir, viver pela arte, fazer cultura em um país que a relega ao último plano.
“Isso aqui é o oposto de um teatro conservador”.
Corpos nus se enroscam, corpos se evidenciam, se abraçam, se amam. Corpos se congregam, se entregam, se aceitam, se permitem ser. Corpos que se entrelaçam e revelam outros mundos de cores e imagens.
A roda da vida gira, gira, gira e as vezes insiste em parar no mesmo lugar. Mas eis que chega a Roda Viva e carrega o destino pra lá, transformando tudo em poesia, em escracho, em riso, em choro, em reflexão, em potência, em movimento. Em movimento. A roda da vida gira, gira, gira.
É o teatro. É isso. É se entregar e viver o momento, sentir a arte inebriante percorrer todos os poros do nosso corpo e revitalizar o espírito com a certeza de que há algo muito maior a nos envolver, a nos conectar. Não falo sobre religião, mesmo que essa seja um dos fios condutores da narrativa, mas sobre um outro misticismo que só é despertado pela arte.
A roda da vida gira, gira, gira.
Aleluia!