Meu primeiro contato com seu nome foi através do livro autobiográfico da cantora Patti Smith, “Só garotos”, que ganhei de aniversário do meu querido amigo Pedro. Jovens, amigos e amantes, descobrem Nova Iorque juntos e crescem com a cidade. Ambos descobrem seus caminhos e descaminhos, mas permanecem sempre amigos. Robert Mapplethorpe assume sua homossexualidade e sua arte considerada obscura, subversiva e que geraria ainda mais polêmica após a sua morte.
Criado em uma família católica, no livro Patti conta que Robert fez questão de apresentá-la aos pais como sua esposa. Ela também narra a busca e a descoberta na fotografia, quando foi a primeira modelo a posar para suas lentes. Antes de começar a fotografar com uma polaroid, Robert já trilhava sua história nas artes visuais com seus desenhos, e desde essa época Patti percebe a sua conexão com o profano em contraste com a religião.
Outro personagem importante na vida de Robert é Sam Wagstaff, colecionador e curador de arte, que investiu e influenciou em toda a sua obra. Foi seu grande companheiro na vida e no trabalho. A história dos dois é tema do documentário “Black White + Gray”, que assisti recentemente. Com uma diferença de idade de mais de vinte anos, os dois nasceram no mesmo dia: 4 de novembro. Se estivesse vivo, Robert completaria 70 anos.
Considerado controverso (e ele gostava disso, e de sua dualidade também) Robert Mapplethorpe chamou a atenção em 1977 ao fazer duas exposições simultâneas em Nova Iorque, uma na galeria comercial “Holly Solomon” e outra em um espaço de arte alternativo “the Kitchen”.
Na primeira estavam seus retratos enquanto a segunda mostrou seleções do seu “Portfolio X”, uma separação declarada da aceitação mainstream e da resistência underground. Marcando a separação das exposições, Mapplethorpe criou um duplo autorretrato, algo como que para firmar sua própria dualidade, seus múltiplos alter-egos.
“Em um retrato usa uma camisa e um relógio da Cartier, no outro usa uma luva de couro e bracelete de metal, ambas as fotografias só mostram sua mão escrevendo a palavra: “pictures” – mostrando a noção de que respeitabilidade e perversão são dois lados da mesma moeda”.
Robert Mapplethorpe criou suas séries Portfolio X, Y e Z, que contrastam totalmente entre si, demarcando em definitivo a sua dualidade na arte. Portfolio Y são imagens de flores, em um fundo preto como nenhum outro (era assim que Sam Wagstaff classificava suas fotografias P&B), e Portfolio Y são os nudes de homens negros.
Portfolio X é a sua série mais ousada. Seus retratos em preto e branco são utilizados para mostrar cenas meticulosamente compostas que vinham de sua imaginação. Fotografias de S&M (sadomasoquismo) revelam este lado do fotógrafo, em explorar temas católicos e familiares na história da arte: a transcendência da carne, transgressão, punição e confissão, agonia e êxtase.
O curador e historiador da arte Germano Celant observou que o trabalho de Mapplethorpe possui uma densidade espiritual, mas em uma conexão com o lado mais obscuro da religião, como se fosse um catolicismo inverso, caracterizado pela atração pelo demoníaco, pela violência, pela humilhação, em uma busca, uma visão de redenção, convertendo o sofrimento em graça através da beleza e do equilíbrio.
Para Mapplethorpe, a melhor metáfora para esta conversão era o sexo, mais precisamente o sexo sadomasoquista, o qual perseguiu intensamente como voyeur e participante durante um período de mais de três anos no fim da década de 70.
“Portfolio X” é resultado desta experiência e é comumente tratado como uma anomalia, um subtema de todo o conjunto de sua obra, que consiste em sua maioria de fotografias de nu clássico, flores e retratos de celebridades, geralmente para minimizar este rompimento com o outro lado, considerado mais saudável da sua carreira artística. Mas as figuras de sexo, como Mapplethorpe as chamava, são essenciais para o todo, como ele mesmo demonstrou em sua persistência de trazê-las para o centro de sua arte.
Considerada obscena e ofensiva, a exposição foi cancelada no The Corcoran Gallery of Art e devido aos protestos, o diretor foi demitido. Porém, suas fotografias estavam em exibição no Contemporary Arts Center (CAC), e causaram pela primeira vez na história dos Estados Unidos, um processo ao museu e ao diretor, Dennis Barrie. Era o julgamento da arte.
Um júri formado por fotógrafos analisou todo o conjunto da exposição de Mapplethorpe e decidiu por unanimidade, que suas fotografias são artísticas. Do total de 175 fotos, seis foram consideradas obscenas. Depois do julgamento da arte, a série Portfolio X só viria à luz do público 25 anos depois, em 2015. E mesmo após todo este tempo, seu trabalho continua chocante. Afinal, a arte deve gerar desconforto, questionamento, reflexão.
PS: Para os mais fortes, na galeria tem uma das fotos mais impactantes de Mapplethorpe (um autorretrato em que ele sodomiza a si próprio).