Por Luiz Renato de Souza Pinto*

Japão e Coreia do Norte embrenham-se em um emaranhado de horrores. Sim, porque o que é a guerra senão uma expropriação da liberdade coletiva de um povo e ou de qualquer indivíduo sob fogo cruzado da intolerância. Li recentemente um livro de Edgar Morin intitulado Cultura e barbárie europeias em que o educador se debruça sobre as agruras do século XX e de como fomentaram esse clima de horror da atualidade. A barbárie quando ligada ao aparelho estatal vem travestida de civilização. Mas o interessante é como isso vem associado com a arte e a produção do conhecimento. Foi assim durante o Renascimento italiano, foi assim ao longo da Primeira Guerra Mundial, legitimando a dominação por meio de regimes totalitários.

Neste final de semana que passou pude assistir a dois filmes nacionais. O já premiado Como nossos pais, de Laís Bodanski e o João, baseado na biografia do maestro João Carlos Martins. Incrível como a arte nos propicia um passeio sentimental pela história da humanidade, em vários níveis. Noções sobre família, sobre política, respeito e uma série de outras pequenas atribuições da humanidade são servidas como aperitivos na filmografia mundial. Não vim aqui para defender o (defensável) cinema brasileiro. Gosto de cinema, não necessariamente de cineastas.

João Carlos Martins

Tenho minhas preferências, como qualquer um. Prefiro inicialmente o que tenho às mãos, depois o que poderia ter por perto. Ao longo do filme de Laís fui rememorando passagens de minha vida, de minhas guerras internas, dos inimigos imaginários. Lembrei-me de Vanusa, de Antonio Marcos, de Elis Regina, de Belchior (naturalmente). Mas a agonia maior veio das imagens do maestro e de sua fúria ao piano, de como aquilo se tornou uma obsessão e de como ele a superou.

Uma coisa é a arte, outra o artista que a produz. Ana Maria Machado, imortal da Academia Brasileira de Letras, reuniu algumas de suas conferências em um livro intitulado Contracorrente e em uma delas alerta para o fato de que há uma ideologia do autor, uma do livro e uma do leitor. Isso vale para qualquer obra, qualquer ato de leitura, qualquer um/uma! João foi e é um marco na história da cultura brasileira, da música universal. Ligado ao Paulo Maluf teve parte de sua vida cravejada de olhares excessivamente puritanos que condenavam sua associação política ao “magnata” da Eucatex.

É de se lembrar que Marília Pera esteve ao lado de Fernando Collor, que Regina Duarte tem grande simpatia pelo PSDB, e que Paulo Maluf e Color de Melo apoiaram os governos Lula e Dilma. Uma coisa é o artista, outra, a sua obra. E assim pude admirar Nelson Rodrigues com suas relações incestuosas, que nunca me fizeram achar incesto algo normal. E nesse ponto encontro Morin quando afirma que “devemos então nos voltar para a segunda faceta do humanismo, a que estipula o respeito por todos os seres humanos, independentemente de sexo, raça, cultura, nação” (MORIN, 2009, p. 46).

Pessoas andam por aí ejaculando no pescoço alheio, recebendo propinas para não realização de obras públicas, assassinando crianças nas filas de hospitais e por aí afora. As bibliotecas estão vazias, as escolas com altos índices de evasão e os hospitais caducos de tanta gente doente. Morin afirma que os próprios colonizadores trazem o antídoto para a descolonização. E disserta maravilhosamente bem sobre o assunto. O antídoto vem com o próprio veneno.

Não me sinto a vontade para sair por aí levantando qualquer bandeira, pelo simples fato de por baixo do mesmo guarda-chuva encontrar traidores de primeira hora do que se cobra no momento. E eles são de todas as horas, sexos, crenças, ideologias, partidos; pois nenhum inteiro. Estamos carentes de líderes, de bons exemplos, de ideais.

É ainda com Morin que sigo nesta reflexão de final de tarde do início de setembro.  “Assistimos à volta das violências étnicas, nacionais e religiosas num grande número de países e regiões. Algumas dessas explosões de violência fazem com que achemos talvez possível que haja uma guerra religiosa ou uma guerra entre culturas, ou até mesmo entre civilizações” (MORIN, 2009, P. 69).

Não sei nada de Japão ou de Coreia do Norte, sobre a possibilidade de confronto belicoso ao extremo. Sei que a paz é algo distante nesse projeto decadente de humanidade. Guerras são mecanismos invariáveis de contenção de avanços, de distribuição de rendas, de enriquecimento de poucos. Fome e miséria são distribuídas às mancheias em todo o universo. Quem souber o que vem por aí que se antecipe e atire logo a primeira pedra.

*Luiz Renato de Souza Pinto é professor, ator, poeta e escritor.
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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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