*Entrevista originalmente publicada no site Overmundo em 01/12/2006

Vou bater um papo aqui com uma das línguas mais talentosas de Mato Grosso. Um artista por inteiro, um cara sem meias palavras, franco, direto como um soco no estômago da hipocrisia. Dono de uma pintura visceral, um grande colorista, um grande artista. Esse cara foi colocado entre os 100 maiores artistas do século passado, nos catálogos dos Museus de Arte Moderna, de São Paulo, Paris e Nova Iorque. Continua ativo, vivíssimo e pintando. Sempre pintando, essa é a sua sina: pintar, pintar e pintar.

O artista Adir Sodré durante seu ritual de pintura

Entre tintas, pinceis e o verbo: ele fala disparando (palavras) como uma metralhadora verbal, é um cara que beira a insanidade (no bom sentido, é claro!), mas é muito amoroso, muito querido mesmo. Somos amigos há mais de vinte anos. Não dá para abrir mão de um cara desses por aqui. Mato Grosso é terra de muitos pintores, e bons. Adir Sodré não está sozinho nessa terra de grandes artistas.

Adir soma?

Adir de aderir.

Aderir a quê?

Não sei, acho que é tudo um grande golpe também. Mas estou tentando somar.

Como foi o início de sua carreira?

É uma loucura porque eu nasci pintando. Pra mim sobreviver, teria que fazer arte de alguma forma. Seria pintar, cantar, alguma coisa eu ia fazer, dançar que eu não ia, né? Então, eu morava no interior, comecei a pintar com 10 anos. Mais ou menos, com 15 eu já queria ser artista mesmo. Com 20, eu sobrevivia disso.

Onde você nasceu Adir?

Nasci em Rondonópolis, mas só nasci. Meu pai garimpeiro, nômade, cada filho nasceu em um lugar, e fiquei no interior até 14, vim para Cuiabá com 15 e estou aqui até hoje.

Seu pai me contou uma história certa vez… que vc vivia pintando em sala de aula, dava um trabalho danado, não gostava da escola, como é que era isso?

A escola sempre foi um horror também, gastavam cadernos por mês, eu gastava um por dia, entende? Eu não lia com 8 anos, literalmente, como do jeito que acham que é a leitura, equivocadamente, só como leitura de signos verbais. Eu sabia as marcas de todos os produtos, então eu lia. Na loja do meu pai o cara pedia alguma coisa e eu achava o produto. Pra eu aprender a ler, me bateram. Com 9 e meio, lá pelo 3° e 4° ano não sabia ler, dava golpe em todo mundo, mas literalmente eu não lia e desenhava muito. E meu irmão dava aula particular lá, o Zé, falou assim: “O rapaz não lê, no armazém mando olhar lá, pega a marmelada, dizendo que era goiabada”, e eu falei que era marmelada. Você não lê, você lê só marca. Mas acho que isso está traçado, é o destino, vem como uma fúria enlouquecida, você não escapa.

Almoço na relva – Adir Sodré

Aos 20 anos você já sobrevivia de arte… que é uma coisa dificílima até hoje, não é?

A gente tenta. Vai dando murro em ponta de faca, mas dá pra viver. Já viajei o mundo inteiro, eu tenho o que eu quero. Tá muito bom o que eu tenho. O mais interessante é que eu virei cidadão, né? Isso é o mais interessante.

Como é isso? E antes?

Mas ninguém é nada nesse país, entendeu, é uma grande batalha, imagina querer ser artista nesse país, só sacanagem, bandido, vagabundo, então, acho que a gente fica marginal mesmo. Eu virei cidadão mesmo porque eu trabalhei pra isso também. Aos 20 anos eu pirei. Eu queria ir pra São Paulo, queria ver o Masp, que museu é esse? Não queria ser pintor daqui.

E como é que você tomou consciência dessa realidade, por exemplo, o Masp, como você ficou sabendo?

Ah! Eu tive uma grande aula da Aline Figueiredo com o Humberto Espíndola. Era legal né? Também, são pessoas sofisticadíssimas, eles têm uma visão louquíssima, de vanguarda mesmo. Eu e o Gervane sempre fomos muito ágeis. A gente convivia com os livros deles, com os discos, com tudo. E devoramos livros, devoramos, devoramos, devoramos.

Então, o acesso ao bem cultural, é importante?

Sim, muito. É fundamental, se você não estudar não tem jeito. Tem que estudar e muito! A palavra é disciplina, disciplina! Nada de graça, não adianta.

Muito esforço… Ezra Pound falava isso, esse negócio de talento… Talento é 10%, 90% é esforço, é trabalho. Você acredita nisso?

Claro que sim. Se você não desenhar muito, não melhora nada, não tem jeito, é muita disciplina.Tem que errar muito pra aprender. Errar muitas vezes. Não é pintar uma tela, é pintar 100, 200, 300.

Jogar 99 fora?

Não, vende, tenta vender. Joga nada fora. Poema tá ruim? Guarda, melhora ele depois. Nada de rasgar papel, papel tá caro, tudo custa muito caro.

O artista Adir Sodré

Rsrsrs… Bom, e ai? Primeira vez que chegou no Masp, como é que foi?

Aí eu subi a escada do Masp, não conhecia ninguém. Esbarrei numa senhora ruiva, linda, estranha. Aí abri a tela, ela já levou pro Bardi. Ela comprou uma tela bacana. Ele pagou só um pouquinho. Ela pagou caro e ele pagou barato. Ela falou: “pode vender é interessante pra você!”. Daí não parei mais, ele me convidou pra expor no Masp. Depois daquilo, e essa exposição que ele me convidou, ganhei a APCA, pintor do ano, em 86, aí não parei mais. Fui pro Japão, pra Nova Iorque, aí calhou que o Chateaubriand comprou um trabalho meu também, e eu acabei entrando em galerias boas de São Paulo, e Rio. Só que quando me convidavam não era a elite brasileira, era a elite de fora. Podia ser uma exclusividade estranhíssima aqui, podia ser um pintor folclórico brasileiro, mas eu não tenho perturbação nenhuma. Pinto uva, maçã, pera, papagaio, tudo eu pinto. Papagaio vira urubu, né?. Mas é um papagaio. Então tem essa história também da gente ficar sempre no escanteio, de sempre achar que está à margem também, mas eu dei sorte, eu procurei.

A gente ouve muita gente falar demais também, reclamar, reclamar, reclamar, e deixar de fazer em função de que acha que não tem condição de fazer, que não tem estrutura…

Quem não tem talento não se estabelece, não adianta, se vc não nasceu pra aquilo, sai fora, procura outra coisa, fazer arte não é hobby não. Não é brincadeira. Qualquer área, se você vai fundo, você se dá bem, não tem esse negócio de ficar como marginal. Tá fora de moda esse negócio de ser marginal, hoje tá muito mais amplo, muito mais aberto, quem trabalha e tem talento vai viver daquilo, com certeza que vive.

Você e o Gervane de Paula se destacaram bastante aqui no contexto da arte na década de 80, inclusive vocês se inseriram nesse movimento, chamado de Geração 80, teve Parque Lage, aquela grande exposição lá, como é que você vê essa inserção de vocês dois num movimento nacional e em pouco tempo de atuação…

E também tem uma coisa muito estranha, você tem que saber penetrar nesse circuito, que é um circuito terrível. E agora, com o advento de curadores, você fica fora de tudo. Se você não tá lá perto, puxando saco do pessoal do Rio e de São Paulo, você não tá em lugar nenhum. Nesse país desse tamanho… Cuiabá… ir daqui a Manaus ou ao Rio, é a mesma distância. Que confusão que é essa então? Fora essa confusão, tem todo um glamour, essa é a perturbação, eu não tenho paciência. Não vai ter um trabalho bacana. Você tem que saber inserir ele, entendeu? Aí que é complicado, eu acho. Mas não é fácil.

E agora, com esse fenômeno, por exemplo, da internet, uma ferramenta hoje que aproxima todo mundo? Estamos no mesmo espaço virtual, vamos dizer assim, então não tem distância entre Rio e São Paulo, entre Cuiabá e Manaus, nós estamos no mesmo lugar virtual.

Eu não sei como pegar essa máquina e usar ela ainda.

Sim, mas como é que você a vê hoje, como possibilidade revolucionária, de aproximar todo mundo?

Isso é tudo, é absoluto, é o futuro de tudo. Eu não sei como essa máquina funciona, tô engatinhando, sou um analfabeto digital ainda. Só sei que eu acho tudo que quero, entendeu, mas ela é uma arma poderosíssima, não tem jeito, ela é uma arma poderosa. Ela é um instrumento para trabalhar, que eu não sei ainda.

Você não está só no interior mais, seu nome circula no meio internacional, é conhecido fora daqui.

O problema todo é que é tudo meio instantâneo.

Você está se sentindo fora, out?

Eu quero estar out. Porque eu faço desenho, pintura duvidosa, entendeu? Eu quero fazer o que eu faço e bem, tentar fazer bem.

O artista Adir Sodré

E você tem mercado pra isso, fora dos salões de arte?

Sim, eu não posso reclamar.

Você vive exclusivamente da arte?

Só. Não vivo assim… sofisticado, mas vivo assim… pagando minhas contas em dia, eu viajo a hora que eu quero, acordo a hora que eu quero, tá bom.

E aquele Adir, por exemplo, menos comportado eu diria. Ouço muita gente falar, “Ah, o Adir? O Adir tá morto pra pintura. Ele está se repetindo.” E agora? O que vem do Adir? Vem alguma coisa nova ou você descobriu a galinha dos ovos de ouro?

Eu como disso, entendeu? Não tenho pudor nenhum. Que história é essa? Meu trabalho é assim, minha pintura é bem feita. Não é porque eu vou usar um tema erótico, um tema agressivo, que vai piorar meu nome na história da pintura. Decorar é preciso, viver também. Décor não é pecado.

Você é um artista décor?

Sou sim, sou 10, sou 100, vou virar Adir Horror? Vou virar Frido Kahlo, vou virar Adir Sodré? Mil. Vou virar mil, dez mil, trinta mil.

É um Picasso da América Latina…

Little dicks. E todos ficam te dando títulos, títulos, títulos. A gente tem que comer meu amigo, esse povo da vanguarda pra fazer uma instalação, pega 20 mil, 30 mil reais… vai dar 500 reais pra você ver! Ficar mendigando pra vender uma tela por mil reais em Cuiabá, acorda!

Como você analisa a inserção do seu nome entre os 100 maiores artistas do século passado nos catálogos dos museus de arte moderna de Paris, Nova Iorque e São Paulo?

É tudo golpe, é tudo instantâneo, eles te colocam e te tiram também, depois volta ou não.

Mas está lá registrado!

Nada é brincadeira, não estou brincando há 30 anos. Não estou brincando em serviço. Tem gente que odeia meu trabalho! Alguns acham que sou um golpe, tem outros que adoram. Teve uma curadora japonesa que falou: “É bom isso aí!”. Tem gente que gosta e não gosta. Eu acho que é assim.

De quem você gosta na história da pintura?

É ciclo. Eu gosto muito de Picasso, Matisse, eu gosto de Jack Pollock. Eu gosto de um japonês agora, um pop japonês, acho que é Murakami, que é bom pra caramba, eu gosto do Keith Haring, então acho que no futuro eu vou fazer uma exposição coletiva, não individual, vou abrir cinco pintores num só Adir.

Heterônimos?

O Adir Horror que é um pop amazônico…

Pessoa pintor? Inclusive o Adir Pessoa?

Sim. Vai ter o Adir e mais 4 pessoas. Você não quer esse, compra aquele. Vai ter o Frido Kahlo, o Adir Sodoré, que é um japonês que faz ideogramas, enfim, vou abrir uma coletiva, não é individual.

Coletivo de um só é muito massa!

Tem toda essa coisa da moda, de a pessoa eleger você naquele exato momento e depois você está morto. Como está morto? Você tem que estar sempre lá. 70% é você ir atrás de São Paulo, atrás de galeria, pra puxar saco de um, de outro, eu? Eu não sei fazer instalação cara! Nesse momento não se pinta, supostamente.

A arte, então, é um grande golpe?

Sim, sofisticado, um golpe de mestre.

E como você analisa a questão da política cultural, pública e privada, parece que tá todo mundo assim, muita gente saturada, de saco cheio de leis de incentivo.

Mas a lei do incentivo leva a muita coisa. Aqui em Cuiabá mesmo, Mato Grosso, essa lei fez muita coisa interessante. Mas é preciso melhorar, que as pessoas se unam em categorias e lutem pelo direito delas. É tão pouco o que eles dão, cara. 1% ou 2% não é nada!

Tem uma luta agora para se chegar a 1% do orçamento para a Cultura no Brasil. O ministro Gil está lutando para isso.

A confusão toda é que fica muita gente mafiosa no caminho, não é? Muita gente ruim que quer ser conselheiro de cultura, isso e aquilo, mas a lei é fundamental. Imagina, tem algumas coisas no planeta que alguém tem que financiar, por exemplo, a qualidade do ar universal, ninguém quer pagar…

Senão todo mundo vai pagar por isso…

Vamos pagar, e muito caro.

A sereia nuclear em noite de luar e o poeta – Adir Sodré

Como convencer a iniciativa privada, a financiar, por exemplo, quem está em processo de formação cultural?

Isso é a cara do Brasil, uma confusão, não tem educação. Um país que constrói cadeia ao invés de escola, Você quer o quê? Um país que constrói cadeia, e todo mundo foge da cadeia? Tem que construir escola. O Brasil investe muito pouco em educação, entendeu? Você pega países com PIB muito menor e que investem muito mais em educação, a gente investe muito pouco em educação…

Então, a saída é essa?

Não tem outro jeito.

Viva a arte!

Sim.

Viva o Adir!

Yes.

*Quer curtir mais Adir Sodré? Nos arquivos do Itaú Cultural você encontra alguns dos seus trabalhos.

2 Comentários

  1. Nossa!!!! Já amava Adir … somente hoje li esta reportagem e amei ainda mais o artista que se eternizou muito cedo! Parabéns Eduardo Ferreira, soube extrair a alma deste intenso artista de uma forma tão agradável e especial!

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