Comedido em suas ações, pequeno, humilde e pacífico. Atrás de tanta calmaria, maquiada por óculos e um semblante tranquilo, morava uma galáxia de confabulações, de mundos fantásticos construídos a partir de uma armação de palavras simples, mas que se traduziam em imagens das mais surpreendentes.
A rotina e os apetrechos eram pouco imprevisíveis: da casa no Pedregal à banca na UFMT e o fim de noite na casa de amigos ou em um evento underground qualquer. No complemento, a pastinha com suas anotações manuscritas e a inseparável sombrinha. Além de tudo era prevenido.
Fora o caráter aplicativo e útil da sombrinha, todo o contexto remete a um frevo compassado e desacelerado. A caminhada de Sodré sempre foi compassada, devagar, não tinha pressa. Mas para dançar estava sempre a postos. Eu mesma dancei com o poeta. Cantei também.
A primeira vez que o vi foi destoante dessa imagem pacata e inerente quando se fala dele. Eu acabava de entrar para a faculdade de Jornalismo na Universidade Federal de Mato Grosso. Por conta de uma greve, tive que esperar um semestre para começar. Quando o momento chegou, fui inserida em uma movimentação estudantil que promoveu uma invasão à reitoria. Era o ápice para uma recém-universitária.
Antes da caminhada, eis que uma voz com um tom choroso e reclamativo me chamou a atenção. Sodré não estava nada contido, estava gigantesco em cima de um caminhão de som, criticando os “500 anos de exploração!”. Meu coração chega a ficar inquieto quando me lembro desse momento.
A experiência me atraiu para ele. Sempre ia trocar uma ideia na banca improvisada. Ele sempre tinha algo a oferecer. Quantas vezes fiquei devendo, porque ele era mestre em convencer que a literatura valia a pena. Alguns livros me soavam inúteis, mas só ele podia enxergar além. É certo que me valeram mais tarde, e aí só me vinha à mente “esse Sodré é danado”.
Depois de concluir o curso, ainda o encontrava sempre, pois perambulávamos pelos mesmos lugares. Certa vez nos encontramos no saudoso Bar do Neurô. Intimei-o para que sentasse à mesa e iniciasse uma poesia a quatro mãos. E durante à noite mais gente foi se juntando. Ele se voltou para mim e disse: “Hoje você está estimulando a poesia coletiva”. Na minha ignorância mal podia perceber que se tratava de um evento.
Pouco tempo depois, trabalhando em um jornal, chamei-o para ser colaborador aos domingos, mas a disciplina ficava comprometida. Não porque ele deixava de escrever suas crônicas, mas é que elas, mesmo em tempo de internet, ficavam perdidas em forma de manuscrito, salvo quando algum amigo colaborava ao digitá-las e repassá-las por e-mail.
Assim como na poesia, suas crônicas rendiam uma centelha de encantamento. Os lampejos da percepção cotidiana de Sodré sempre rendiam histórias com enredos inesperados. No remate vinha sua assinatura. Ele se apresentava como o poeta da transmutação. Uma revolução silenciosa que o seu coração não suportou.
O amigo Eduardo Ferreira considera que esse tenha sido um codinome ou um slogan que declarava e constatava sua poesia como sintoma da pós-modernidade. Ele lançava mão de diversas escolas literárias e, nesse emaranhado, dava cria a uma poesia livre, lúdica, mas com uma sofisticação inerente.
O tom descontraído, e por vezes dotado de comédia das suas obras, também se valeu de outra linguagem para sobreviver. Sodré vivia num trânsito constante entre a literatura e a música. Suas poesias musicadas foram reproduzidas pelo grupo da vanguarda mato-grossense, Caximir. Grupo ativista e revolucionador que ajudou a criar e que integrava como cantor, compositor e performer. A propósito, foi em um evento que discutia a poesia marginal que os parceiros Sodré e Eduardo Ferreira se conheceram.
Dentre tantos instantes modestos, mas esfuziantes que vivemos, não me esqueço do presente que recebi dele no meu 27º aniversário, comemorado na Galeria do Pádua, um importante centro cultural de Cuiabá. Ele me surpreendeu com uma crônica sobre a noite, inspirado por todo apelo visual da galeria. Ao avaliar os acontecimentos, chamou-me a atenção em sua escrita um cupido que “mijava eternamente”. E que engraçado! Penso neste líquido como a poesia de Sodré, fluente, eterna, que continua respingando em mim.
P.S.: O líquido em questão era a água do chafariz da Galeria do Pádua, que fique bem claro rs
(*Nota da editoria: Na coletânea de contos e poesias Beatniks, malditos e marginais: literatura na Cidade Verde (Multifoco, 2013), foi realizada uma homenagem a Antônio Sodré, el poeta de la transmutácion y de la trancedencia, naquele momento fazia dois anos da sua morte. Antônio Sodré foi o homenageado da coletânea. Lidiane escreveu essa crônica que foi publicada na mesma edição)