Roberto não fez apenas uma música. Victório não fantasiou a música indígena. Ele mergulhou fundo e de lá das profundas águas Bororo, de onde se nasce e para onde se retorna, na crença deles, Roberto extraiu uma obra contemporânea ímpar, captando e interpretando a transcendência da música ritual do ciclo funeral Bororo.
Decifrou, decodificou, colou, recortou, remodelou, leu, releu, colocou na partitura uma trans-criação transcendente de uma música que é parte de um ritual profundo que abre as comportas da percepção para a espiritualidade humana. Um ritual complexo de encontro da etnia com sua cosmogonia. Da compreensão dos eternos ciclos da vida. Mundos paralelos, entre o carnal e o espiritual.
Durante o ritual funerário tudo que acontece na aldeia tem como objetivo a preparação do morto para a grande viagem espiritual rumo a Morada das Almas. Que, na visão do Bororo, se localiza num plano paralelo situado logo acima, no plano superior e espiritual. Como um espelho de onde podemos enxergar nossa própria essência. Nas profundezas de nossas almas certamente está lá como a repousar nas águas o plano espiritual, que ascendemos quando abrimos as portas da percepção através da música dos cantos entoados à exaustão, através dos xamãs (aquele que enxerga no escuro), para evocar as forças invisíveis que estão a vagar pelas esferas.
Os xamãs praticam o estar em todos os lugares ao mesmo tempo. A sua observação é que define o que vemos. Sem a sua interpretação o mundo não é nada. São camadas de elementos mágicos que só com coragem para alterar a percepção é que poderá compreender.
O fato de assumir e legitimar o conhecimento dessas pessoas fora dos círculos acadêmicos gerou controvérsias na avaliação da pesquisa pelos acadêmicos que não aceitam orientações que não sejam do seu metiê. O maestro bancou e botou banca na banca, por que não? Enfim, foram figuras importantíssimas para o autor que valoriza todo o conhecimento emanado por eles e que só eles detêm.
A vasta obra musical do Roberto Victório é intensa e excessiva. Ele cria e produz muito, uma obra atrás da outra ou seria a variação da mesma obra em infinitos desdobramentos? São questões que perpassam minha cabeça neste momento.
Numa carta que Roberto recebeu recentemente, o musicólogo e regente nascido na Inglaterra, Graham Griffiths, que é um crítico e estudioso sério, fez uma leitura de sua obra colocando-a dentro de um contexto muito significativo. Transcrevo aqui um trecho importante que dá a dimensão dessa Trilogia Bororo.
Porém, veja bem, a sua música não é uma ‘fantasia indígena’ como a de V-L, mas é mesmo The Real Thing, baseado em pesquisa etno-musicológica, em gravações, em conhecimento e em respeito. Assim, é uma homenagem muito digna ao universo da cultura indígena brasileira. E também um Hino à religiosidade profunda do povo brasileiro. E uma grande realização cultural/espiritual. Parabéns a todos envolvidos. Sobretudo, parabéns a você, Roberto.”