Por Demétrio Panarotto*
As botas entraram antes, ou as pessoas perceberam as botas primeiro. Ele entrou de cabeça baixa, com as botas tomadas de lama, as calças tomadas de lama até o joelho, e dali por diante, lama em boa parte do corpo. Lama no nariz também.
Foi até o banheiro, lavou as mãos, voltou, sentou-se e pediu uma cerveja. Foi quando um dos clientes, ao fundo, o de menos intimidade, fez a pergunta que todos que notaram o moço entrando no bar queriam fazer:
– Estava aonde, que está tapado de lama?
Ele demorou o mínimo possível e respondeu com precisão:
– acabei de enterrar a minha mulher;
É bem provável que, diante da quantidade de barro, tenha passado pela cabeça de algum dos presentes que ele tenha matado alguém. Mas, se não conseguimos controlar o que pensamos, podemos controlar as nossas ações. Assim, se ninguém esperava que houvesse a pergunta, esperava-se menos ainda que a resposta fosse dada com tamanha precisão e frieza.
Um silêncio cortou o ambiente e ficou se balançando sobre a cabeça dos presentes.
Um outro silêncio formou camada sem recheio com o primeiro.
Depois da fala precisa do moço; alguns jatos de riso, que ficaram entre a boca e o fora, se tornaram amarelos em poucos segundos.
O moço, o que entrou no bar, sem tirar o olho do bodegueiro que acabara de deixar a garrafa de cerveja sobre a mesa, serviu um tanto, olhou bem para o copo, e tomou um gole demoradamente. A cena parece que aconteceu em câmera lenta. Ou demorou mais tempo que o necessário. E foi acompanhada por todos, nos mínimos detalhes.
Depois disso, alguns sorrisos, menos amarelos que os de antes, ganharam o ambiente, e a descontração começou a se espraiar novamente.
E cessou de novo.
A descontração era falsa.
Parece que ele não havia contado tudo.
Alguns zunidos compuseram o clima, ao fundo, enquanto todos ouviam paralisados a sequência da história:
– Eu não soube lidar com a situação, nunca ergui o braço pra ninguém, mas desta vez perdi o controle que sempre pensei que fosse colado em mim: ouvi o que não devia ser dito calado, me neguei uma, duas, três, várias vezes; virei de costas, corri na outra direção, tentei sair do mesmo local em que nos encontrávamos, recebi outras estocadas, todas elas sem muita força – tenho certeza que não me machucariam, a mão dela era macia, aveludada – e num momento em que a saliva secou na garganta, reagi, como se fosse pego pelas mãos e atiçado como um cachorro sarnento: acertei-a em cheio. Ela caiu. Não esperava. O corpo queria outra coisa, mas o que tinha para o momento era aquilo. Depois disso – de perceber que não tinha volta, de que ela já não dava sinais de que reagiria, excitado mas tentando manter o controle -, arrastar o corpo, cortar em pedaços e levar em partes até o porta-malas, parece que foi natural. Uma hora de estrada no sentido Água Amarela e depois de fazer o resto do serviço, de cavar, cavar, cavar e continuar cavando, me deu apenas uma sensação de alívio. É engraçado como o aparente conforto nos toma subitamente quando nos livramos de algo que nos incomoda e depois desaparece com a mesma rapidez que nos tomou. Daí percebemos que estamos só. Com uma dívida monstruosa, não apenas com o outro, mas com nós mesmos.
Depois do relato, perdeu o olhar em alguma coisa que parecia suspensa no ar, e tomou mais um gole de cerveja.
Ele perdeu o olhar, mas quem o escutava permaneceu com o olhar fixo nele, sem piscar vírgulas.
Adultos também brincam de estátua.
Uma voz, ainda sem entender o que havia acontecido, perguntou, mas isso aconteceu quando?
Ele levantou-se, sacou a arma e deu um tiro em um pote grande de ovos em conserva que se encontrava em cima do balcão.
O dono do boteco paralisou. Uma gota de suor partiu de entre os fios de cabelos que restavam na cabeça, cruzou a testa e se perdeu no ar.
Os demais estavam paralisados.
E o moço, o da história, perguntou:
– alguém ouviu um cocoricó depois que estourei o vidro de ovos?
– claro, disse um dos presentes – aquele que fala tentando segurar as palavras dentro da boca, mas não consegue -, e se o senhor perguntar se escutamos um coachado junto com o cocoricó, a resposta será a mesma.
– que bom, disse o moço, e voltou a sentar-se;
A câmera, naquele momento, foi saindo do espaço devagarinho e chegou até a porta. Quem a manuseava tremeu a mão ao descer o degrau que dividia o espaço interno do bar com o passeio público. Mais uma tremida ao descer o degrau da rua, esperou um carro passar e atravessou a via demoradamente. Um canteiro central, mais uma, duas, três tremidas, alguns passos mais… acabou de chegar no passeio público do outro lado. Parou.
Em alguns segundos (parece), do lado de fora do bar dava para ouvir o som da sirene de um carro de polícia que, aos poucos, passou a ganhar volume na cena.
O som deve ter transbordado para o lado de dentro do boteco, impossível que os que lá se encontravam não tivessem notado.
Quando o carro de polícia estacionou, bem em frente.
O câmera percebeu que havia terminado o cartão/bateria.
Tentou ser rápido e eficiente. Não conseguiu nem um nem outro.
Quando ligou a câmera novamente, se ouvia, já alto, o barulho de uma ambulância.
Texto foda, prende que nem a respiração do peixe fora dagua
faroeste urbano, massa mesmo, então, lendo sua “ficha” percebo que o cidadão tá nas garras da arte e que tem um livro que me interessa “demás da conta”, esse ensaio sobre Euclides e Tom, gostaria adquiri-lo, entrar na posse desse bem, pode ser? e como?
Que bacana Demétrio, baita texto. abracao.
Oi Andre, ainda tenho algumas cópias do livro comigo. Se tiver interesse, tu pode pegar o meu contato com Edu, abraços.
Sensacional, Demétrio!
Estamos aguardando mais contos de nosso mais novo colaborador-articulador, Demétrio Panarotto!