Ivy Menon

O mundo à volta feito de terra que minava água e afundava nossos passos de passarinhos, não nos metia medo. O charco que cobria metade do nosso corpo e centuplicava a dificuldade do trabalho, não nos desanimava. Aquele arrozal a perder de vista tombava os cachos dourados e pesados, mesmo sem qualquer ventinho, exigia pressa na colheita. A infância, barateada pela fome, fora contratada para que os bolsos e a mesa do patrão se mantivessem cheios. O tempo urgia. Nunca dávamos prejuízo. Sabíamos o que fazer.

Munidos de cutelo, saco de estopa, chapéu de palha e camisa de mangas compridas. Um canivete para arrancar farpas, espinhos e sanguessugas. E disposição para obedecer o pai que empreitara os não sei quantos alqueires de arroz para que voltassem ensacados para o dono da fazenda. Enquanto o cutelo cortava fartura que ajuntávamos em grandes molhos, sonhávamos com as sobras das soqueiras. Logo seriam perdidas centenas de quilos de arroz no meio do lamaçal. Apodrecidos.

Levávamos também uma marmita de arroz de terceira, feijão, farinha e duas rodelas finas de linguiça mista, às vezes, abobrinha e cebolinha de cheiro. O embornal com a comida pouca e uma garrafa de vidro com café frio, fechada com uma rolha de palha de milho, deixávamos largado num canto, protegido da umidade e das formigas. Quando não encontrávamos um local seco, improvisávamos forro de palhas das touceiras, em cima do jirau.

Cortar arroz, juntá-lo em feixes amarrados num saco de estopa, carregá-los na cabeça até o local que seriam batidos, sim, era tarefa sobre-humana para quatro crianças menores de 12 anos. E tinha o aguaçal. O terreno da várzea engolia nossas pernas a cada movimento. Muitas vezes os fardos caiam da cabeça. O que estivesse mais próximo, ajudava o outro a recuperar o recolhido e a desprender o que tinha ficado atolado. Então reiniciávamos a trilha do fim do dia.

A despeito de nos chafurdarmos no barro, nos congelarmos no frio, de colecionarmos cortes, arranhões e vergões de alergia, na colheita do arroz nada se comparava ao pânico que tínhamos do ataque das sanguessugas.

Alguém jurou para o pai que sanguessugas transmitiam esquistossomose, a famosa e apavorante “barriga-d’água”. Tenho para mim que nascemos sabendo disso. Nunca um profissional de saúde ou um professor nos desmentiu sobre a crença. Desinformados, ignorantes dos males maiores ao nosso redor, vivíamos de medo em medo. De dor em dor. Para minha família, sanguessuga era uma lesma com dentes e língua que aspirava sangue de meninos que colhiam arroz andando e tombando no meio do lodo.

A mãe, ao nos abençoar antes de sairmos de casa, sempre lembrava: “não vão partir a sanguessuga no meio. Arranca ela, raspando por baixo, onde ela colar. Se arrebentar, a sanguessuga entra nas veias e dá barriga d’água”. Nós tivemos contato com muitas crianças com barriga d’água. Diziam-nos, apavorados, que os médicos drenavam o líquido do ventre dos pobrezinhos, uma vez por mês. No entanto, todos morriam quase explodindo.

E as sanguessugas nos atacavam diariamente. Um irmão gritava socorro para o outro. O canivete, ou o próprio cutelo, servia de instrumento para descolarmos a ventosa do monstro grudada em nossas canelas, pés, coxas ou onde conseguisse sua porção de sangue.

A irmã, certa vez, foi alvo de uma investida feroz dos bichos. Meses com uma infecção numa das juntas do dedão do pé. Sofreu dores atrozes. Tratamento paliativo com fumo e urina, emplastos de juá-bravo, folhas e unguentos, ensinamento repassado de geração em geração para a mãe. No máximo, da farmácia, o pai comprava sulfa em pó. Sobre nossas cabeças, o medo incompreensível, imensurável e aterrorizante de que começasse, a qualquer momento, a juntar água na barriga da nossa irmã.

Que eu me lembre, uma única vez, o dono da várzea nos ofereceu todo o arroz que sobrara nas soqueiras, como pagamento para deixar o terreno limpo, depois da safra. Foram os piores dias. As sanguessugas estavam mais famintas que nós. Tiraram muito do nosso sangue, porém, dos restolhos, colhemos mais de quinze sacos. O patrão se arrependeu da bondade.

Fecho os olhos ou adianto a cena quando, naqueles filmes medievais, aparecem pessoas sendo submetidas às sangrias, com dezenas de sanguessugas a mamarem a vida do doente. Não entendo a lógica. Jamais procurarei entender. Ainda choro pelas feridas dos meus irmãos. Ainda sinto os dentes das malditas sanguessugas na minha carne indefesa de menina.

 

Ivy Menon, 62 anos, natural de Cornélio Procópio-Pr, escreve poesia, crônicas e contos, os quais publica nas redes sociais e e revistas eletrônicas. É bacharel em Direito, com pós em Filosofia, além de jornalista e teóloga. Gosta, de verdade, de ser vovó! Aposentada, mora em Rio Negro-Pr. Uma das finalistas (Poesia) no Prêmio Off Flip em 2018 e 2019

2 Comentários

  1. A narrativa é de uma singeleza tão tocante que IvY Menon consegue nos passar, não só a visão da menina distante no tempo retido na memória e da mulher madura em suas reminiscências, mas também uma doce mistura de ambas.

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