Por Anna Amélia Marimon
Naquela manhã Gisela chegou cedo ao escritório. Dr. Fontes não permitia atrasos. Já em idade avançada, era cheio de manias. De todas as estagiárias que passaram pelo seu comando poucas foram aprovadas. Sua fama era bem conhecida dos formandos da universidade de Direito. Quando de bom humor tinha lá um jeito brincalhão, dado as trovinhas, aos sonetos, as crônicas singelas do dia a dia. Mas por detrás da aparente simpatia escondia-se um sujeito chato e exigente. A grande biblioteca com títulos raros era o seu maior tesouro. E justamente desse valioso tesouro Gisela tinha de se ocupar, espanando, limpando, catalogando, organizando da forma mais cuidadosa possível. Todo santo dia repassava as vistas naquela infinidade de volumes, alguns já bem fragilizados pela ação do tempo.
Sem querer, Gisela já havia cometido alguns deslizes, como quando tentou limpar um livro raro, bastante antigo, e ao esfregar o pó da capa acabou por remover a tinta de pigmento argiloso, desbotando por completo a gravura antiga, crime este que nunca foi descoberto. A moça era um primor de criatura. Doce, solícita, sempre atenta com um caderno de notas e uma caneta na mão. Dr. Fontes tinha por ela o maior apreço. Não era por menos, Gisela era uma jovem bonita,de grandes olhos curiosos, verdes, arregalados, tez pálida e cabelos louro acinzentados, de compleição frágil, apesar da altura, e um ar deliciosamente sonso, o que lhe conferia uma característica singular.
Apesar da simpatia pela jovem, Dr. Fontes mantinha uma distância gélida, intransponível, A pobre moça morria de medo do velho desembargador. Vivia tensa, a transitar pelo labirinto de estantes de livros, fiscalizando, arrumando, tirando o pó e de vez em quando lendo um ou outro volume, no intervalo das suas obrigações. Mas, como tudo neste mundo tem uma compensação, a esposa do bode velho era excelente criatura, mulher bondosa, sensível, sempre por perto, como uma fada madrinha a amenizar as agruras pelas quais passava a jovem estagiária. “Imagina!”, dizia ela. “Você não vai ser reprovada, cão que ladra não morde.”
Certo dia, ao chegar ao escritório, Gisela foi surpreendida com uma notícia: Seu sisudo patrão ia viajar para a Europa. D. Eli estava radiante:
– “Vamos a Europa, querida! Desde não sei quando desejo conhecer a Europa! Você tomará conta de tudo: afinal são só duas semanas!”
Gisela ficou embasbacada: – “Como assim? O escritório por minha conta?”
Eli, percebendo seu embaraço, argumentou: – “Não se preocupe, meu bem, e depois pode até tirar uma folguinha!”. Dizendo isso piscou o olho. Sinal de cumplicidade. Gisela torceu o nariz desconfiada. – “Folguinha! Até parece!”
A semana correu monótona. Na sexta feira Gisela acordou com uma baita preguiça. – “Acho que não vou trabalhar” pensou. E se assim pensou, melhor, o fez. Virou para o lado e dormiu até o meio dia. Acordou com o telefone. Uma boa balada de fim de semana. Na segunda ainda estava de ressaca. Achou melhor não fazer nada. Para que se cansar? Passou o dia todo de papo pro ar. Ainda lhe restava quase uma semana de folga, que escritório que nada! Gisela considerou a hipótese de também tirar umas férias. Afinal, isso ficara subentendido na conversa com D. Eli. Passou a terça- feira, quarta, quinta, seu prazo estava esgotado. Ciente das suas obrigações resolveu ir logo ao trabalho. Na ante-sala do desembargador estava tudo em ordem, o escritório também estava limpo. Mas, ao entrar na biblioteca percebeu a poeira e muitas teias de aranha que se estendiam pelos corredores de estantes.
Eram teias de aranhazinhas débeis, de longas pernas finas, frágeis, tão indefesas que ao mais leve rumor fugiam parede acima para salvar a pele. Porém, o que mais chamou a atenção de Gisela foi o fato que as aranhas adultas eram seguidas de pequenas aranhazinhas inocentes, mais frágeis do que suas próprias mães. Diante disso, Gisela considerou que as pobres aranhas tinham afinal, direito a vida, e nada, neste vasto mundo cão faria a moça desistir da ideia. Por essa razão em vez de matar os indesejáveis insetos como teria ordenado o Desembargador sisudo, Gisela concedeu-lhes o privilégio da vida.
Preservou-as cuidadosamente, admirando a sábia natureza que faz com que, desde que o mundo é mundo, os filhotes corram em busca da proteção materna independente da sua espécie, credo ou cor. Portanto as aranhas negras, de pernas longas e finas e toda a sua prole ou descendência mereciam por direito irrevogável, outorgado pela mãe natureza, viver. Gisela, tomada de súbita inspiração sentou-se e redigiu a sua monografia, emperrada há muitos meses. Tratou com inteligência o tema, extraindo dele pérolas da jurisprudência civil. Outorgou às aranhas a condição de bibliotecárias vitalícias, guardiãs inquestionáveis do precioso tesouro da literatura jurídica. Argumentou sobre as inúmeras qualidades das aranhas, e destacou entre tais qualidades a de devoradoras de traças, essas sim, inimigas número um dos livros antigos. Com tantas alegações pertinentes, (isso é o que ela considerava) as indefesas aranhazinhas seriam afinal merecedoras de perdão e respeito.
Depois de dar por finda a tarefa de escrever sua brilhante monografia, Gisela a encadernou caprichosamente e deixou-a sobre a mesa do Desembargador, ao lado de uma pequena estatueta em bronze, representando a justiça com sua espada, a balança e a indefectível venda sobre os olhos. Munida de uma flanela e cera de carnaúba, lustrou com cuidado a grande escrivaninha de mogno, as caixas de charuto, limpou e organizou a coleção de canetas tinteiro, arrumou os porta-retratos, ajeitou nas paredes as gravuras de Debret, aspirou a poeira das almofadas de veludo, espanou as peças de porcelana e ajeitou a baixela de prata com as mimosas xícaras orientais. Soltando um profundo suspiro, olhou ao redor e constatou que estava tudo impecável, na mais perfeita ordem.
Na sexta feira, por volta do meio dia, Dr. Fontes chegou acompanhado de sua adorável esposa. Perfumes, caixa de música, e recebeu do próprio desembargador uma reprodução emoldurada de Monet, seu pintor preferido e uma garrafa de Bourbon. Em meio a tantas novidades esqueceu-se por completo das aranhas e aranhazinhas, que infestavam a biblioteca. Dr. Fontes, pela primeira vez alegre, cobriu de elogios a sua pupila, dizendo o quanto estava satisfeito com os seus serviços prestimosos. Às cinco da tarde Gisela acompanhava D. Eli no seu chá com torradas, ambas deliciando-se com biscoitos e conversa fiada, quando ouviram um grito terrível. Dr. Fontes acabara de entrar na biblioteca.
Em poucos segundos, Gisela tinha diante de si o patrão mais furioso que se pode imaginar. Com o rosto inflado de ira e vermelho a ponto de ter um ataque, Dr. Fontes demitiu a moça sumariamente, sem apelação D. Eli, conhecedora do mau gênio do marido, permaneceu calada. Dirigiu-se até a biblioteca e ficou pasma diante da infinidade de teias de aranha que se espalhavam pelo ambiente. Enquanto isso, Gisela recolhia silenciosamente seus pertences murmurando:_ ”Não tive coragem para matar. Desculpe-me” O velho desembargador rosnou aborrecido e sentou-se na sua grande mesa, enquanto a jovem retirava-se dignamente, certa de ter agido da melhor forma. D. Eli, surpresa, perguntava afinal o que lhe passara pela cabeça para deixar a biblioteca entregue às aranhas, logo ela, uma moça tão sensata e competente. A boa senhora estava inconformada com tanto desleixo.
Sentado à mesa de trabalho, Dr. Fontes estendeu a mão para pegar a caixa de charutos e deparou-se com a monografia de Gisela ao lado da estatueta da justiça. _”Ora, era só o que me faltava, a mocinha desmiolada finalmente escreveu sua monografia!” Curioso, começou a ler e sua expressão alternava-se entre dúvida e espanto. – “Mas que menina atrevida!”, exclamou ao fim da leitura. E pegando o interfone, disse a esposa com uma expressão divertida: – “Suspenda a faxineira. Que a justiça seja feita! Gisela tinha razão”.