Um romance. Vinte e três capítulos numerados (além do 12,5), entrecortados por três nomeados FOI A HELENA QUEM FALOU PRIMEIRO, ERA SÓ ELA E O ANCINHO e O TIO JESUS, todos iniciados por minúsculas, talvez como quem se apresenta de maneira contígua ao discurso. E os recortes assinados pelo porteiro, o dono daquelas mãos no elevador. Aqueles nove minutos sem energia que não fosse a do abuso.
A mãe, o pai, Afonso, o rinoceronte. Personagens discretos que envolvem o universo da Anja. Um livro perturbador, sobretudo para quem recebeu no aconchego do lar o trabalho de cuidadores de idosos. Para quem sentiu alguns dos cheiros ofertados na leitura da protagonista que nos choca como quem corta os pulsos e sobrevive ao que seria trágico. “O caroço no pescoço ela também não pode ver, mas sente todas as vezes que encosta ali a palma da mão” (DANTÉS, 2020, p. 29).
“Nem sinal de asas” é obra que inaugura o ciclo de narrativas longas de Marcela Dantés e tem sido bem recebido pela crítica. Não quero falar de outra coisa, além do que mais se presentificou em minha leitura: “Seria impossível ir além, com aquele caroço comprimindo as suas cordas vocais e só agora ela entendia” (idem, p. 33). Desde as primeiras páginas que se anuncia a finitude da matéria. Mas a maneira como a história se conta fazia pensar que não haveria motivos para pânico. “Por isso, hoje aquele caroço não assustava” (idem, p. 38).
Por fora, ao longo da escrita, o leitor vai se envolvendo com o prédio decadente que já fora hotel. E do 902 surgem as histórias que se narram. “Bem ali, onde, do lado de dentro, o caroço crescia desgovernado” (p. 123). De dentro do corpo, digo. De dentro do apartamento em que se escondia um gato que não era doméstico, pois selvagem. “O caroço nem ameaçava existir e, portanto, não doía” (p. 145). Rinoceronte era seu nome. “Isso foi antes do caroço, e, inclusive, semanas antes de Dulce se mudar para o seu apartamento” (p. 159). Dulce era a mãe de Anja. O leitor é convidado a sentir-se seguro para prosseguir a viagem. Até que a quase ininterrupta imagem que atravessa a escrita se impõe:
Mas não era uma angústia, era um caroço (…) Um caroço que crescia dentro da boca de uma mulher que já andava magra demais (…) caroço esbranquiçado e endurecido que começava a crescer num canto escuro daquela caverna inútil (…) Na noite anterior, Anja havia tentado arrancar o caroço, (idem, p. 161).
Francisco, o pai, morto; Dulce, a mãe, morta, Anja, a protagonista e narradora – também se foi. “Só o caroço parecia prosperar naquele ambiente inóspito” (idem, p. 163). E me parece que se desenha o futuro do presente naquele quarto de hotel; quero dizer, no apartamento 902 do que foi hotel um dia “e que se aquele caroço estúpido não era capaz de terminar com uma vida vazia, ela seria” (p. 195). O porteiro deixa registrado o que seria uma imagem épica do romance: “quem tenta se matar e não consegue é suicida e fracassado, dupla falta” (idem, p. 178).
Um livro de aromas, de cheiros que transbordam dos corpos em degeneração, de onde “o cheiro não arrefecia porque vinha do caroço incrustado no fundo da sua garganta” (p. 201). O olfato se nutrindo do que se desprendia da carne putrefata. “Ela olhava o próprio corpo e ele ali, inteiro, dois braços, duas coxas, barriga, pescoço, caroço” (p. 208). O livro se parece com um chamamento. “Ela chamava Francisco, com o resto da voz que conseguia atravessar o caroço” (p. 209). O pai não respondia ao seu chamado.
Embora a história se encerre à página 229 com a assinatura da protagonista, meus olhos se contentariam com o primeiro parágrafo de uma das páginas anteriores, que reproduzo abaixo a título de curiosidade ao leitor:
Por três vezes naquela manhã Anja acha que está morta. O silêncio é tão absoluto e o vazio tão imenso que ela demora a perceber que o simples fato de achar que está morta é a prova de que está viva. Na terceira e última vez, ela pensa que aquilo é algum tipo de delay, um atraso normal do processo, como as últimas vezes em que as pás do ventilador giram, mesmo depois que você puxa o fio da tomada (idem, p. 227).
DANTÉS, Marcela. Nem sinal de Asas. São Paulo: Patuá, 2020.