Os romancistas não escrevem sobre seus assuntos, mas em torno deles, diz Julian Barnes. E Stephen Vizinczey arredonda este pensamento com uma frase precisa e luminosa: “o autor jovem sempre fala de si mesmo, até quando fala dos outros, ao passo que o autor maduro sempre fala dos outros, mesmo quando fala de si mesmo” (MONTERO, 2015, p. 168).

Ouvi falar de Rosa Montero no Youtube, procurando referências de livros sobre escrita criativa. Na verdade ouvi falar de seu livro “A louca da Casa”, romance com fortes aspectos metalinguísticos e comentários sobre o ato da escrita propriamente dito. Procurei um tempo pelo livro e quando nem mais pensava nele, eis que me deparo com um exemplar que arrematei no Rua Antiga, nome mais sério para o Fusca-Sebo, de Marília & Thiago.

Não tinha ideia do que seria esse livro, como, aliás, muitos outros com os quais me relaciono. Acontece que à medida que a leitura fluía fui me sentindo em uma ambientação que lembrava em muito algum filme do Almodóvar; qualquer filme, nenhum especificamente. O título faz alusão a um deles apenas para encetar a discussão.  Essa impressão também me surge da leitura de outro de seus romances: “Te tratarei como uma rainha”, como ilustra a citação abaixo:

Vestia uma camiseta marrom suja de manga curta; sobre o bíceps tinha tatuada, em duas cores, a frase “Pouco barulho por Tudo”, de onde vinha seu apelido, e a frase se encolhia e estirava ao seu redor, retorcendo-se como uma coisa viva ao compasso do movimento do músculo (MONTERO, 2014, p. 26)).

A referência à obra de Shakespeare é no mínimo risível. Mas em “A louca da casa” a ficção mescla-se a comentários sobre a prática textual de ficção, da qual se podem extrair dicas interessantes para se experimentar. Ou mesmo para pensarmos o próprio ato de ler. “Escrever romances é a coisa mais parecida com apaixonar-se que já encontrei (ou melhor, a única coisa parecida), com a apreciável vantagem de que, na escrita, não se precisa da colaboração de outra pessoa” (2015, p. 9).

E nessa wibe, a narração segue seu itinerário repleto de nuances, de lembranças, de situações inusitadas. “Mas no ofício de romancista há uma coisa muito mais importante que esse tilintar de palavras, e é a imaginação, devaneios, essas outras vidas fantásticas e ocultas que todos temos. Faulkner dizia que um romance é a vida secreta de um escritor, o obscuro irmão gêmeo de um homem” (idem, p. 13). Para Rosa Montero, a palavra louca é metáfora para a imaginação.

E haja vida secreta para povoar a literatura. Apesar da linguagem fluida, da graça subjacente ao discurso literário e do registro jornalístico (Rosa é profissional do meio) deparamo-nos com uma série de reflexões profundas e povoadas de certa sobriedade, ao longo da narrativa.

Para mim, o famoso compromisso do escritor não consiste em engajar suas obras a favor de uma causa (o utilitarismo panfletário é a traição máxima ao ofício; a literatura é um caminho do conhecimento que precisamos percorrer carregados de perguntas, não de respostas), e sim em permanecer sempre alerta contra o senso comum, contra o preconceito próprio, contra todas as ideias herdadas e não questionadas que se infiltram insidiosamente em nossa cabeça, venenosas como o cianeto, inertes como o chumbo, más ideias que induzem à preguiça intelectual (idem, p. 39).

Não estamos diante de quem apenas brinca com as palavras. Mas de alguém que dá o tratamento necessário para a construção do discurso. De alguém que objetifica sua escrita com o devir necessário que o escritor detém. Ou deveria. “Todos nós sabemos quando nos vendemos” (idem, p. 43). Ao descrever situações em que se reflete sobre o que move o escritor diante do papel em branco, Rosa Montero traveste sua narradora de poderes sobre os quais as teclas do computador se movimentam a procura da palavra certa.

Cada autor tem o seu ritmo, mas a escrita de um romance é sempre um processo muito lento; eu costumo demorar três ou quatro anos. Gasto a metade desse tempo desenvolvendo a história dentro da minha cabeça e tomando notas à mão numa infinidade de cadernetas (idem, p. 45).

Esta última citação, trago-a por concordar em gênero, número e grau. De todas as lições que traz, em “A louca da Casa” a que me pareceu de maior valia foi, sem dúvida a de que “um verdadeiro romance sempre terá alguma coisa sobrando, alguma coisa irregular e desleixada (os crustáceos grudados na baleia), porque é um reflexo da vida, e a vida nunca é exata” (idem, p. 100-1). Agora tenho atrás de mim outro de seus romances: “Lágrimas na chuva” aguarda pacientemente pela sua vez.

 

REFERÊNCIAS

MONTERO, Rosa. Te tratarei como uma rainha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014.

                          A Louca da Casa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.

 

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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