Bons ares sopram poesia toda quinta-feira do Sul do país. De Santa Catarina, o chapecoense Demétrio Panarotto aciona sua rádio poesia com a incrível Quinta Maldita. São programas radiofônicos com vozes de diferentes tipos e sotaques, de Portugal aos quilombos, do sul e do norte, centro-oeste, sudeste, nordeste, América Latina, cabem todas as vozes, e eles buscam isso mesmo, capturar sonoras ondas de poesia de ponta a ponta de pontos em pontos numa grande cruzada a favor da arte preciosa da palavra. Como soam bem, é o que digo-vos, apreciem, busquem ouvir essas vozes sonantes e dissonantes, cadenciadas ou abruptas, fortes e suaves, lentas, velozes… Como diria Cecília Meirelles, não sou alegre nem sou triste sou poeta. Muitos poetas estão por aí, espalhados, fertilizando sensibilidades e navegando nas águas dos experimentos poéticos com suas multiplas possibilidades. E como tem poesia boa por aí! A despeito de toda e qualquer crise do pensamento da estética da história ou da filosofia a arte sempre encontra suas maneiras de expressar os sentimentos do mundo.

Demétrio Panarotto é meu velho conhecido de muitos encontros. Ele é músico poeta compositor e estudioso de literatura, professor e ativista cultural, está sempre defendendo o espaço da poesia e da arte.

Toda quinta é dia de poesia

Quinta Maldita

(por Demétrio Panarotto)

Quinta Maldita é um programa de versos;

de vozes também;

de várias vozes que se misturam, que se tocam, que criam ranhuras;

vocalizações;

e, importante, de corpo, ou melhor, da relação da voz com o corpo;

daquilo que vem do dizer poético;

da palavra sendo dita, lida, falada, cantada, dançada;

da palavra junto com instrumentos musicais;

junções melódicas ou não;

com ruídos;

um programa de cores e sotaques;

ah, e texturas;

ah de novo, e de crocâncias;

da relação da palavra com quem a ouve, por mais que isso seja uma segunda intervenção;

da distância entre aquilo que se fala e aquilo que se entende;

do verbo respeitando a relação com o branco do papel, mas pedindo passagem em sua forma mais bruta,

às vezes ligeiramente lapidado,

às vezes sóbrio, às vezes ébrio, às vezes completamente ébrio,

caindo da boca, com hálito, com muito hálito,

tomando as ruas, as calçadas, os calçadões, os bares, os botecos, as feiras, os palcos,

sendo amplificado por caixas de som ou simplesmente sendo ditos, berrados, gritados,

brigando com os ruídos da cidade,

ali na cidade bem ali no lugar onde o verbo precisa estar,

não com precisão, daquilo que precisa ser preciso, mas que pode ser um simples balbucio ou um gaguejar;

o mal dito também cabe no dizer;

pode ser do mal falado, mal cantado, mal dançado, mal lido, mas com toda a força do corpo e junto do coração;

das possibilidades e não como impossibilidade moral da moralidade social ou da moralidade acadêmica;

da palavra que pode ser pensada na sua relação teórica, sem ser presa pela teoria,

sem ser presa nas gaiolas dos protocolos;

vozes e mais vozes;

vozes.

Entrevista com Demétrio Panarotto

Quando começou e qual foi a motivação para realizar a Quinta Maldita?

Demétrio Panarotto – O programa teve início em 2017 a partir de uma leitura pública que fiz na Cervejaria Sambaqui (era o lançamento do livro Café com Boceta). O Marcio Fontoura, da Desterro Cultural, filmou a apresentação e me fez a proposta. A partir dali a ideia ganhou corpo. Mas antes disso havia realizado e/ou me envolvido com outras atividades de leituras em vários cantos do estado e do país. Tinha um projeto (que realizava quando era possível) que se chamava Paisagens Literárias. O projeto consistia na leitura de textos (prosa e poesia) tendo a cidade como pano de fundo e, na maioria das vezes, em espaços públicos. Nos reuníamos para ler textos.

Quantas edições já aconteceram, e por quê a linguagem radiofônica?

Já estamos chegando a oitenta entre os programas gravados e os saraus. Gosto muito de ouvir a voz do poema ainda mais quando o poema é lido pelo próprio e pela própria poeta. Em sala de aula, ou nos cursos que ministro, levo os poemas e, sempre que possível, o áudio com a leitura. Quando não há na voz do próprio poeta adoro a ideia de lermos e sentirmos através da sonoridade a intensidade do texto que nem sempre se faz presente em uma leitura solitária. O espaço radiofônico é uma paixão antiga, afinal, sou de uma geração que se criou ouvindo rádio, aguardando o locutor anunciar as bandas que fariam parte da programação e de ficar à espera para gravar (em fitas cassetes) as músicas que teria dificuldades de ouvir depois em outro lugar (e que ficava puto da cara quando o cara da rádio falava por cima das músicas). Ah, participei de vários programas de rádio em vários cantos do Brasil. Em Chapecó ainda, eu e meu irmão, rodamos pela primeira vez uma de nossas composições (Banda Repolho) em um programa de rádio que estávamos comandando.

Os programa são temáticos?

Todos os programas são temáticos. Sempre tenho mais que uma proposta na manga e as outras surgem e vão fazendo parte dessa lista. Muitas vezes compartilho essas ideias com amigos próximos e as amadureço. Depois que as defino, organizo, em alguns casos, um pequeno texto que chamo de dispositivo de escrita e parto para os convites considerando o próprio estilo dos e das poetas que conheço e tenho contato. Convido normalmente entre dezesseis e vinte poetas e depois, quando recebo os áudios, monto um corpo de vozes. A ideia principal é fugir dos protocolos e dar força para o texto sendo dito, gritado, berrado, cantado, gaguejado… Há um outro ponto que adoro nesse percurso que são as parcerias com blogs, sites, saraus, revistas, ou coletivos de poesia. Já fizemos programas em que a curadoria ficou por conta de Ronald Augusto (A Voz Pública da Poesia, Porto Alegre), Silvana Guimarães (Germina – Revista de Literatua & Arte, Belo-Horizonte), Paulino Junior, que montou duas edições (Palavras Revoltas I e II) e que está montando outra; (do escritor) Rodrigo Naranjo (que realizou uma leitura de Santiago – Chile); Abrasabarca (um coletivo de mulheres de Florianópolis-SC); Matheus Guménin Barreto (Ruído Manifesto – Cuiabá-MT), Deborah Garcia Boeira e Douglas Gomes Dos Santos (Sarau da Tainha, Balneário Camboriú-SC); Alice Souto e Joana Golin (do Sarau Nuvem Colona – Chapecó-SC) José Inácio Vieira de Melo (Poesia na Boca da Noite, de Jequié-BA); além de outras contribuições realizadas pelos amigos Ricardo Rojas Ayrala (BA-Argentina) e Jorge Vicente (InComunidade, Portugal).

Como estão as conexões poéticas no Brasil? Pode citar exemplos, referências e similares…

É um programa que se monta a partir de conexões. Além dos já citados e citadas na resposta acima: Samuel Ferrari Lago e Rodrigo Barros Del Rei (Radiocaos – Curitiba-PR); Ricardo Silvestrin (Um Bando de Gente – Porto Alegre-RS), Noélia Ribeiro (A Fim de Poesia – Brasília-DF), Demétrios Galvão (Revista Acrobata – Teresina-PI), Ribamar Júnior (Zueira Literária – Floriano-PI), nossa, são várias, além das feiras e eventos literários que já estão consagrados no imaginário brasileiro e outros tantos que o meu olhar e o meu ouvido não conseguem dar conta.

Poesia pra quê, poesia pra quem?

Poesia é a possibilidade de se deparar com o lugar de fala e de escuta da outra e do outro. De perceber como o modo de ver o mundo é absurdamente diferente do modo como vejo. Quando penso em temas para os programas e me deparo com olhares que me colocam em lugares que o meu olhar não daria conta de maneira alguma, sinto-me extasiado. Sinto-me desse modo pois não quero pra mim o olhar unilateral, verticalizado e cheio de filtros da mídia brasileira (ma maioria das vezes canalha e mau caráter) e, por extensão, do cânone (com desvios muito parecidos), mas quero o olhar horizontalizado onde posso enxergar um pouco além do lugar em que me encontro. E cada programa me dá essa sensação. O quinta maldita é isso, um corpo de vozes.

Por quê quinta e não terça ou poesia de segunda?

Quinta em português também é quintal, o que  nos permite realizarmos programas em qualquer dia da semana. E isso aconteceu nas várias edições que fizemos na estrada, afinal, no formato sarau, além das várias edições realizadas em Florianópolis-SC, também realizamos eventos em Itajaí-SC, Balneário Camboriú-SC, Chapecó-SC, Rodeio-SC e três edições em Porto Alegre-RS. Maldita, pois bem, a palavra se divide entre aquilo que é bem dito e mal dito, além, é claro, do modo como se desconecta de algo usual.

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