Por Diego Callazans*
Por uma névoa arcana, já quase noite, a pitar, só com meu dæmon, vagava, a memorar maldições para esquecer minha Paloma, que já não via há anos. E logo a fome me impôs que num recinto entrasse atrás de qualquer quitute. Pisei o beque e fui logo pedindo com o que dar paz para meus vermes queridos. O gordo atrás do balcão cuspiu:
“Aqui só se bebe. Na dona ao lado se acha”.
Agradeci o conselho. O canto assim apontado era bodega caída. Achei petiscos não dados a quem saiu de uma gripe havia nem três dias. A evitar pensamentos, chamei “alguém!” e quem veio foi uma velha esquálida, com pele lúcida e veste mui negra e com mil botões.
“Que tem para comer cá?”, foi uma pergunta inútil, pois tudo estava na cara, mas quis soar menos rude.
“De um tudo”, sorriu à força e me mostrou as delícias. De se lamber pela vista, um bolo meio crispado, a inda brilhar de gordura, com o recheio a fugir-lhe, chamou por minhas más tripas, que bem rugiram em resposta.
“E este, é quanto?”, apontei, imaginando-o na boca. “Ah, quase nada”, me disse.
“Então, vê três”, devolvi.
Ela buscou o acepipe e me serviu taciturna, com seu sorriso encenado. Eu devorei o primeiro, sem refletir – ação pura. E à sua delícia acresci essa da mente calada. Vendo-lhe a face nublada, ao mordiscar o segundo, não resisti:
“O que houve?”.
“Oh, mesmo nada, garanto”.
“Pode dizer, não se avexe”, e toquei breve a mão fria.
“É que não quero coitá-la com minhas coisas sem jeito”. Notei ser algo penoso, então juntei minhas forças para
fingir que eu era uma pessoa simpática:
“E não me coita, é que gosto de conversar quando como”.
“Meu pai morreu”.
Naquele exato momento, eu começava meu último. Até parei as mordidas pra murmurar “sinto muito”. Mas logo o cheiro da carne, tão bem servida no bolo, me fez voltar ao deleite e só o falso interesse que a cortesia primária nos manda ter pelos outros me obrigou a falar, cuspindo salsa e mostarda:
“Quando foi isso?”
A velha, com olhos fundos de quem chorou quanto pôde, tornou-me em voz quase nula, como quem pede desculpas por não ser tão só cenário:
“Foi ontem mesmo”.
Eu esbocei empatia, sentindo a própria distância com que ouvia o tormento formar um tapa invisível que, ao nela mirar, me dava.
“Estamos velando o corpo, numa salinha, nos fundos…
mas, se a incomoda, paramos”.
Não houve subterfúgios. De tão sincera e humilde, feriu-me fundo, na carne. Não quis seguir seu caminho o porco feito em pedaços, que logo à glote voltou e não foi rápido o engasgo. Puxei alguns guardanapos.
“Não há por que se afobar. Não é ninguém, só meu pai”. Nada descia a garganta. Nem mesmo água deu jeito. Nada
mais meti na boca. Paguei e disse “obrigada”. E saí cambaleando, já não faminta, mas suja, chorando pelas vielas. Nem um cigarro caberia em tal momento. Nas tripas, qual falsa tumba, os restos do animal, a reclamar ritos sacros, às minhas vísceras davam um ultimato penoso.
O pai da velha, que nada, segundo ela, valia a uma senhora de si, como supôs que eu fosse, o tinha dentro agora. Como os antigos da terra em que nasci inda fazem quando os filhos dos tristes escravocratas não olham, trazia o meu semelhante nos meus confins. E, como eles, achei tão prazeroso o calvário.
Foi para isso que os maus romanos desenvolveram seu tolo confessionário. Para limpar – ah se fácil! – o gosto amargo que deixa a comunhão teofágica.
Diego Callazans nasceu em Ilhéus, em julho de 1982, e mora em Aracaju desde abril de 1987. É autor dos livros A poesia agora é o que me resta (Patuá, 2013) e Nódoa (7 Letras, 2015), além do minilivro Blasfêmias (7 Letras, 2015). Tem poemas incluídos nos livros É agora como nunca: Antologia Incompleta da Poesia Contemporânea Brasileira (lançado no Brasil pela Companhia das Letras e em Portugal pela Cotovia, sendo ambas as edições de 2017) e Naquela Língua: Cem poemas e alguns mais: Antologia da Novíssima Poesia Brasileira (lançado em Portugal pela Elsinore, em 2016).