Por Carole Bê

navegando naquele ombro salgado, ondas suadas no pescoço, dá vontade de morder. aí eu vi que ela tem um camafeu na pele. não, não é tatuagem. é uma joia talhada na carne, feita de carne, com cheiro de carne e rosto de anjo. lembrei de um anel que mamãe me deu quando eu ainda pintava as unhas. tinha uma moça em relevo. isso é um camafeu, acho. quando eu era criança e frequentava minhas primeiras aulas de geografia, chamava relevo de “revelo”. fiquei no mínimo um ano lendo assim, sem perceber o grande acerto — porque o relevo revela, não é? as fendas do espaço, o olhar indiferente da moça com seus cabelos presos, os amores escondidos atrás das pedras. paisagens essas que eu queria compartilhar com você, porque não posso suportar tanta beleza sozinha. não cabe nos meus olhos enormes. ontem, por exemplo, fomos para a cama: eu, meus dedos e o seu retrato, pregado nas pálpebras pelo lado de dentro. gozei três vezes. escorreu. lençóis trocados — já passou. na cama enorme, vários amantes, todos novos e encapados, com meu nome no rosto — nesse caso é tatuagem, não é camafeu — cortázar, emily dickinson (ah, sim, também transo mulheres), balzac, artaud, bandeira. durmo com todos, sou promí­scua mesmo, mastigo um, beijo a orelha do outro, abraço emily, ah, emily! — e quando durmo, sonho com letras marulhando, sinto o cheiro dos barcos de papel ancorar no cais da sombra. e me deixo morrer como o sol virando as costas impiedosas para o leste. mas você sabe, eu sou muito bem resolvida com as minhas más resoluções, então acabo conseguindo repousar lá pelas tantas, quando já é hora de acordar de novo e a luz na infiltração me faz lembrar que não paguei o aluguel. acredita? outra vez! e ainda gastei tudo o que tinha com livros e camisinhas. mês passado até sobrou um dinheirinho, bebi menos, fumei pouco, trepei nadinha… as camisinhas todas lá, perto do lubrificante, o santo altar da puta ausência. mas a madrugada ainda se faz presente, sim, ela me ama e eu fiquei brincando de calcular o quanto de sol existia na lua aquele dia em que você ficou calado — um camafeu, um camafeu na pele. já imaginou? eu também me calaria. ah, se eu pudesse barquejar o seu tesão, me atiraria mar adentro, ia engolir a espuma toda, odor de peixe misturado com farol. tem corais nos seus cabelos, minha pele em água-viva. devo voltar a sylvia plath, acho — deito-me nua com sua morte quando soluço. o aluguel depois, quem sabe. estou aberta para tudo, menos para o fechamento. como o mar. como, do verbo comer mesmo. um dia ainda chego ao ártico — nadando? — preciso lamber gelo, ver o sol na horizontal. se eu fizer trinta e três anos,

(texto publicado na terceira edição da Revista Bacanal, lançada pela Editora Nautilus em 2015)

*Carole B. é poeta e mora no Rio de Janeiro

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