A rotina de Clara era a mesma diariamente. Acordava às 7h00 e tomava um banho enquanto esquentava a água para o café, colocava seu uniforme do trabalho e saía com os fones nos ouvidos para escutar as indicações da semana do Spotfy. Fazia o mesmo percurso todos os dias até o ponto de ônibus. E gostava de observar as pessoas e o devir da rua enquanto andava apressadamente distraída.
Aquele dia em particular, era uma sexta-feira e Clara já saiu de casa pensando no happy hour com os amigos após o expediente. Era uma tradição para iniciar o fim de semana. Com a cabeça longe, atravessou a rua para chegar ao seu destino quando de repente, viu-se diante de um elevador.
O ascensorista sorriu quando as portas se abriram e Clara, meio confusa, entrou com um pé atrás do outro.
– Sobe ou desce? Perguntou o homem que aparentava menos idade do que revelava os seus cabelos brancos.
– Não sei, respondeu Clara, ainda mais confusa. Onde estou?
– A senhorita está em um elevador, obviamente.
– Sim, isso eu percebi, mas onde está localizado este elevador exatamente? Eu não lembro como cheguei até aqui.
– Ah claro, senhorita, isso é muito comum. As pessoas geralmente esquecem as suas últimas lembranças – disse, enquanto sorria um sorriso muito branco e arrumava as mangas do seu paletó.
– Isso é alguma brincadeira? É o Daniel do 8º andar que está pregando peças em mim né? Eu sabia que ia ter retorno o último 1º de abril.
– Não senhorita. O Daniel está na Terra e você, bem, você está em um elevador que sobe e desce, mas se você não tem certeza para onde vai, precisarei fazer algumas perguntas.
Atônita Clara não esboçou resposta ou reação, apenas tentava lembrar-se de qual seria a suposta última lembrança e o que significava a frase “Daniel está na Terra”.
O ascensorista arregaçou as mangas do seu paletó e retirou de trás de si, uma prancheta recheada de folhas.
– A senhorita fuma?
– Sim
– Cigarro ou baseado?
– Os dois
– A senhorita bebe?
– Só na sexta-feira…
– A senhorita é vegana?
– Não
– A senhorita é vegetariana?
– Também não
– A senhorita é ovolacto vegetariana?
– Não, eu como carne.
– A senhorita faz voluntariado?
– Não
– A senhorita está envolvida em movimentos sociais?
– Não, mas peraí, o que isso tem a ver com esse elevador?
– O questionário determinará se a senhorita desce ou sobe.
– Eu quero subir.
– Mas a senhorita disse que não sabia para onde ir… Para todos que não sabem para onde ir, somos obrigados a aplicar o questionário. Permita-me continuar… A senhorita já utilizou de algum recurso ilícito para benefício próprio ou de terceiros?
– O que seria “recurso ilícito”? Resmungou Clara visivelmente irritada.
– Ilícito é tudo aquilo proibido por lei.
– Não, nunca cometi nenhum ilícito.
– Tem certeza, senhorita?
– Sim, tenho certeza, afirmou Clara com a expressão entediada.
– A senhorita já militou politicamente?
– Eu ainda não entendi o sentido deste questionário e vou me recusar a responder até que o senhor me explique.
– O que a porra do café tem com isso? Se for me oferecer um café, eu aceito sem açúcar, por favor.
– Café sem açúcar, e certo nível de agressividade para emitir respostas, devidamente anotado. Próxima pergunta: A senhorita está em dia com a Justiça Eleitoral? Tens o certificado de quitação eleitoral?
– Sim.
– E em qual candidato depositou seu voto nas últimas eleições?
– Isso é sigiloso, eu não posso responder.
– Claro, claro senhorita, mas quanto mais esclarecimentos fornecer, mais preciso será o seu perfil sócio-político-econômico.
– Eu não vou responder. Pergunte outra coisa.
– Tudo bem, mas terei que registrar a sua recusa. A senhorita considera-se de direita ou de esquerda?
– Não tenho posicionamento ideológico definido.
– Então seria mais de centro?
– Sim
– Centro esquerda ou centro direita?
– Centro do CARALHO.
– Registrarei que a senhorita prefere não se envolver em questões políticas. Mas é uma pena, a senhorita está deixando um vácuo em seu próprio perfil sócio-político-econômico. A senhorita já realizou alguma doação a pessoas vulneráveis?
– Sim.
– A senhorita já se envolveu em alguma disputa judicial?
– Não.
– A senhorita possui cartão SUS?
– Sim.
– Favor informar o número…
– Eu não sei meu número SUS de cabeça. E por acaso alguém sabe?
– Boa resposta senhorita, vamos para a próxima… A senhorita já contraiu alguma doença e foi trabalhar mesmo assim, infectando todos os demais?
– NÃO.
– Tem certeza? Não se recorda de nenhuma conjuntivite?
– Não.
– Temos em nossos arquivos um dado de que a senhorita compareceu a uma reunião de trabalho com conjuntivite e um dia depois, 10 funcionários faltaram alegando contaminação. A senhorita nega seu envolvimento neste caso?
– Não.
– Não nega ou nega?
– Eu nego.
– A senhorita já doou sangue?
– Não
– A senhorita se cadastrou no banco de doadores de medula óssea?
– Sim
– Foi encontrado um doador compatível?
– Não
– Muito bem. Continuando… A senhorita leu os termos antes de aceitar a política de privacidade dos seus aplicativos, redes sociais… etc?
– Por acaso alguém lê aquilo?
– Na verdade não, mas deveria… Este é um fator preponderante para definir se a senhorita sobe ou desce.
– Eu posso te perguntar o que significa subir ou descer?
– Tudo depende da perspectiva da senhorita, subir pode ser descer e descer pode ser subir, é um complexo filosófico, um espectro muito amplo de possibilidades… Subir e descer, não iremos todos, eventualmente?
Clara suspirou fundo e dentro de sua cabeça perguntou até quando aquele martírio iria durar.
– Oras senhorita, isto não é nenhum martírio. Martírio é quase uma tortura… A senhorita já torturou alguém?
– Lógico que não, que tipo de perguntas são essas afinal?
– A senhorita acredita em direitos humanos?
– Santo Deus…
– A senhorita acredita ou não acredita?
– Meu pai amado…
– Quantas expressões religiosas. A senhorita acredita em Deus?
– Nossa…
– A senhorita tem religião?
– Não
– A senhorita já frequentou alguma igreja?
– Não
– A senhorita cometeu algum crime?
– Não
– Nem roubou doces do mercado quando era criança?
– Como você sabe disso?
– Aqui sabemos de tudo senhorita, por isso disse que não existe resposta certa ou errada, apenas a resposta verdadeira. Prosseguindo… A senhorita já cometeu alguma violação dos tais direitos humanos?
– Acredito que não.
– Temos em nossos registros que a senhorita não é casada. A senhorita possui namorado? Ou seria namorada?
– Sou solteira, por opção.
– A senhorita tem filhos ou já adotou uma criança?
– Não.
– Nem o apadrinhamento de uma criança respondendo sua cartinha de natal nos Correios?
– Não.
– Então a senhorita é feminista?
– Defina feminismo…
– Feminismo é a busca pela equidade de gênero…
– Não entendi como as respostas anteriores se relacionam com a sua lógica, mas sim eu me identifico como feminista.
– A senhorita já se apaixonou?
– Sim
– A senhorita tem algum arrependimento?
– Arrependimento com relação ao que?
– À vida. Deixou de fazer algo que queria e não teve tempo? Sonhou e não realizou? Quis dizer e não disse? Quis cantar e não cantou? Elogiar e não elogiou? Desabafar e não desabafou? Amar e não amou? Diga-me senhorita, teria algo que gostaria de fazer ainda em vida?
– Eu só queria tomar uma cerveja na sexta-feira… só isso.
– Questionário encerrado. A senhorita conhecerá o seu destino dentro de alguns anos enquanto a nossa base de dados faz o comparativo das suas respostas ao ascensorista com o que de fato você viveu… A demora ocorre devido a superlotação do sistema e também as perguntas que ficaram sem respostas, causando uma lacuna no processo de preenchimento e apuração do questionário em nossa base de dados, por isso, a senhorita terá que esperar. Mas os anos podem ser ocupados com a revisão do questionário e qualquer alteração de resposta, a senhorita terá que entrar com um recurso para cada mudança e justificar o porque da alteração, fato que deverá ocorrer antes da senhorita acessar o seu destino, uma vez que o processo deve ser equânime para todas as partes envolvidas, logo, a senhorita não pode mudar respostas em busca de um suposto benefício próprio até então desconhecido. Qualquer dúvida basta acionar o botão de emergência e aguardar a equipe de resgate. Com isso, a senhorita esperará no elevador parado no térreo, até que o mesmo opere para subir ou descer e as portas se abram novamente. Próximo, por favor… Sobe ou desce?
Caraca, isso é muito genial, cara li em voz alta, é muito teatral, choquei, parabéns!