Nic Cardeal

A casa onde me guardo

já não tem janelas nem portas,

ela é toda ventania

dos pés à cabeça

 

sem pé, nem cabeça

a vida vai virando do avesso,

o que antes era, foi embora,

o que veio depois, já saiu de linha

 

cacos de tempo esmigalhados pelos cantos,

de que adianta saber que hoje é quinta-feira,

que dezembro já chegou e logo termina,

se nossas vidas nem viveram as rotinas costumeiras?

 

o coração em permanente sobressalto,

respirando ofegante em minúsculo compartimento,

o espaço que nos separa

também nos ampara

no habitante paradoxo dos caminhos

 

o tempo que nos devora,

a morte que nos espreita,

um estranho sino de vento

[ou tempestade]

em meus ouvidos

– onde seremos sementes

para depois do futuro? –

 

nossas mãos malabaristas

quedam-se exaustas às palavras,

que já nem dizem nada

diante do ano que ora finda,

levando consigo todo aquele qu’inda nem queria…

 

o tempo é raso,

o tombo é rasgo,

sangue ardente em estranhas veias,

sentimentos repartidos

em dores finas,

quase polvilhados de relutâncias

 

[entre as frestas de tamanhas dúvidas

haverá certeza sobrevivente?]

 

e a gente,

como quem colhe flores brancas

para a morte do jardim,

nem se dá conta que já rasgaram nossa estrada

e não temos mais a trilha

 

[com quantas dores serão feitas as nossas despedidas?]

 

Nic Cardeal, catarinense radicada em Curitiba/PR, graduada em Direito, é autora de ‘Sede de céu – poemas’ (Penalux, 2019). Já publicou textos em 29 antologias/coletâneas – 24 no Brasil, 4 em Portugal e 1 na Alemanha. É integrante do movimento Mulherio das Letras desde a sua criação em 2016.