Da estrada, contemplo os carros que jazem sem vida, em um cemitério de automóveis, que por sinal é o nome de um bar na minha antiga rua, o lugar em que nos vimos pela última vez, ainda não tinha me dado conta de que tudo mudou e ao mesmo tempo nada mudou, aquela lembrança cristalizada de mais um amor que não aconteceu, como os veículos que perdem potência e morrem à beira do acostamento, eu sem velocidade fico a contemplar o que deixou de ser, as marcas do tempo em tudo, os sonhos que se desfazem e nunca encontram a luz do dia, a pintura que desbota e destoa do todo, a lataria que se reduz a nada, o tempo soberano que engole qualquer resquício de vida, um carro parado, pneus murchos, uma história que não será contada, sabe, tudo isso é só um pretexto para que eu imagine outros mundos, onde possa existir a possibilidade de que o destino seja algo totalmente diverso da realidade, a tinta branca do veículo que se apaga aos poucos, também foi em um carro branco que entrei naquela noite, quando você me buscou no aeroporto e nos encontramos pela primeira vez, é tão distante de mim e de quem sou hoje que mais se assemelha a um devaneio, não sei porque tudo isso me invade agora depois de tanto tempo, é só um cemitério de automóveis que brinca com a minha mente, naquele teatro lúdico regado a álcool, nossos corpos que se encostavam como se quisessem se agarrar à vã tentativa de permanecer, ainda que soubéssemos que a única certeza é o ruir do tempo, das coisas, das pessoas e amores e finais nada felizes, a única certeza é a entropia a acabar com a lataria, a tinta branca dos veículos que esperam o fim de tudo em fila, uma sequencia interminável de aço, ferro e borracha, que pacientemente aguardam as intempéries, que pouco a pouco vão dissolvendo essa existência de motores que não irão mais rugir com a força da sua combustão, quase como estrelas que nascem, explodem e morrem, não há um motivo para lembrar de você hoje, você é só mais uma lembrança triste da minha eterna impossibilidade de pertencer, você é só mais um cemitério de automóveis, que jaz sepultado no fim dos tempos.