O interior, o fim da vida. Diálogo com a mãe, pós-túmulo: outras dimensões. Os colchetes reservando espaços além da presença da palavrausente. Tatiana Salem Levy lembra Xavier de Maistre com sua viagem ao redor do quarto. “Uma viagem de volta, ainda que eu não tenha saído de lugar algum. Não sei se conseguirei realizá-la, se algum dia sairei do meu próprio quarto, mas a urgência existe” (LEVY,2014, p. 12). A ideia de chaves e portas vai costurando a narrativa, performatizando o trabalho do leitor para além da imaginação criadora. “Nunca saí do lugar, nunca viajei, não conheço senão a escuridão do meu quarto” (idem, p. 105).

Diante da imagem da mesquita percebo como estou envolvido com a narrativa. “Esqueço tudo o que há à minha volta, o calor, o cheiro desagradável, a multidão de turistas e de vendedores ambulantes. Esqueço o motivo da minha viagem, a chave, a porta, o meu avô, o passado” (idem, p. 55) Faço poucas anotações durante a leitura, tal a profundidade do mergulho. O diálogo intestino com a mãe, a ideia da presença da e a projeção para dentro de uma placenta imaginária.

Conto (crio) essa história dos meus antepassados, essa história das imigrações e suas perdas, essa história da chave de casa, da esperança de retornar ao lugar de onde eles saíram, mas nós duas (só nós duas) sabemos ser outro o motivo da minha paralisia (idem, p. 61).

É mais fácil tratar da escrita de Tatiana sob o prisma da auto ficção, a crítica confortável nos ensina isso. Mas não é só isso, não é bem isso: isso! “a chave de casa” é um romance premiado. O livro mais comentado da autora. Publicado em outros países, vira filme. Por trás dessa chave metafórica, multiplicadora de significados, pode estar um elemento fenomenológico para lá dessa experiência do que vem de fora: de Blanchot, Foucault, Deleuze, objeto ensaístico da vida anterior da ficcionista, ainda no plano acadêmico.

O discurso anafórico de sua escrita vai demarcando território por entre as palavras. “Quando você aproximou docemente os lábios dos meus ouvidos, sabia que me faria um pedido:” (idem, p. 104). “Quando você aproximou docemente os lábios dos meus ouvidos, sabia que me faria um pedido:” (idem, p. 112). “Quando você aproximou docemente os lábios dos meus ouvidos, sabia que me faria um pedido, por isso me afastei, estava cansada dos seus pedidos” (idem, p. 119). “Quando você aproximou docemente os lábios dos meus ouvidos, tive medo, muito medo” (idem, p. 129).

Mas na hora da igualdade de sensações, no gozo pleno da companhia alheia, da divisão do espaço entre dois corpos, para além do significado da chave que abre a morada mais íntima, da fechadura do contra-discurso surge como imposição necessária. “Segura um pouco, pedi, aproximando meus lábios do seu ouvido” (idem, p. 154). “De leve, toquei no seu rosto e encostei meus lábios nos seus” (idem, p. 200).

A aproximação dos lábios do outro junto aos seus ouvidos vai num crescendo… crescendo… mas o momento em que a inversão do gesto se materializa passa a ser um marco no comando da relação. “Gestos adequadamente usados – plausíveis, nada teatrais ou extremos, mas singulares e específicos – são como janelas abrindo-se para nos deixar ver a alma de uma pessoa, seus desejos, medos ou obsessões secretos, as relações precisas entre pessoa e o eu, entre o eu e o mundo…” (PROSE, 2008, p. 210).

Francine Prose apresenta a fruição como alternativa para a construção espiral de estados de espírito que facultam ao leitor uma profundidade semântica que o diálogo muitas vezes não atinge, artificializa. “Se um gesto não está iluminando algo, simplesmente elimine-o, ou tente cortá-lo e ver se mais tarde sente falta dele ou mesmo se lembra que ele desapareceu” (idem, p. 224).

Em suas entrevistas que circulam pelo youtube, Tatiana frisa sempre que possível a infinidade de temas, subtemas que adentram suas narrativas. Deixa claro o mergulho no sensível que transforma em turbilhão o mundo sensorial de suas protagonistas. E de texto para texto as chaves vão se interpenetrando no labirinto da memória, nesse abrir e fechar de portas e janelas para o que vem de dentro. Afora tudo isso, uma espécie de vertigem povoa a imaginação do leitor. Ele, o criador dos significados que complementam a diegese narrativa. “Ele não se levantou para abrir a porta, nem mesmo se abalou com o sonido. Fazia tempo que desistira de conferir quem tocava a campainha. Quando se convenceu de que nada poderia, abandonou-se ao desalento” (LEVY, 2014, p. 164).

“Desalento” é o título de um conto da autora, publicado em antologia organizada por Luiz Ruffato, intitulada “25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira”. Publicado pela editora Record, em 2004, traz Tatiana ao lado de Cintia Moscovith, Ana Paula Maia, Clara Averbuck, Letícia Wierchovski, Tércia Montenegro e outras mais.  “Desalento” é também uma história de perdas, como a autora se refere a um dos temas principais de suas obras. É uma história de chaves, de casas, de caixões. De 2004 para cá muita água correu nesse rio abaixo. E as pontes que ligam o discurso escorregadio, essa correnteza de imagens desse caudaloso rio desagua em outros portos, outros cais.

“Paraíso” é um deles. O corpo sendo esfregado em banho turco, em Istambul. A pele esfoliada no chão do banheiro. Imagem do primeiro romance surge de maneira similar por aqui também: “Em casa, debaixo da água quente, enquanto esfregava o corpo com força, apesar do nervosismo, sorria de orgulho de si mesma” (LEVY, 2014, p. 154).

Em “Paraíso” uma espécie de nega fulô surge para dar tempero à narrativa. “Aos poucos, ia respondendo à pergunta fundamental de qualquer livro: por que estou escrevendo essa história? Se não vem do sangue, a escrita fica esvaziada, burocrática” (LEVY, 2014, p. 25). E elementos recorrentes insistem em aparecer: “Exigiu que Laura esfregasse a escova com força repetidas vezes, depois quis ficar sozinha no aposento. (…) Acreditava que as cerdas poderiam arrancar do corpo s sujeira física e mental” (idem, p. 31-2).

À Procura da poesia existente nas coisas, depois de ler esses dois romances de Tatiana Salem Levy, só consigo ouvir a voz baixinha do poeta Carlos Drummond de Andrade como se falasse aos meus ouvidos, apenas a eles, coisas quase incomunicáveis. Pareço ouvir apenas uma expressão soturna e misteriosa antes mesmo que pudesse fechar os olhos: “Trouxeste a chave?”

 

REFERÊNCIAS

LEVY, Tatiana Salem. Desalento. In: 25 Mulheres que estão fazendo a literatura brasileira hoje. RUFATTO, Luiz (org.). Rio de Janeiro: Record, 2004.

____________________. a chave de casa. 7. ed. Rio de Janeiro: Record, 2014.

____________________. paraíso. Rio de Janeiro: Foz, 2014.

PROSE, Francine. Para Ler como um Escritor. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

 

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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