Chegamos ao Teatro da UFMT na noite desta quinta, o segundo dia seguido que vou e os ingressos acabam para a peça que vai começar no Panorama de Artes da Cena. Mas, Sandro Lucose avisa: Ninguém volta para casa hoje sem assistir a peça Cidade dos Outros. Feita a promessa, a fila se inicia e todos entram.
O palco está montado e cadeiras estão em volta do cenário. Sento no chão. E percebo que uma das atrizes está sentada atrás de mim. Ela liga um rádio que entre chiados fala sobre a Operação Lava Jato. As pessoas riem, ficam sem entender. Ela levanta e a peça se inicia.
Uma engrenagem maquinal que conecta as duas atrizes, Juliana Capilé e Tatiane Horevicht. O diálogo que inicia a peça é sobre um acidente envolvendo uma carreta de bois e um carro. Ninguém se machucou. Nem os bois. Em pontos opostos da sala, separadas pela máquina que as une, o que uma pergunta, a outra responde. E a plateia surpresa, reage, algumas pessoas sem jeito quase respondem às indagações.
Com direção de Amauri Tangará, os diálogos são carregados da ironia e sarcasmo que lhe são peculiares. E muitos riam como se a peça fosse apenas uma comédia. Mas, aquilo é drama. Os personagens começam a maquinar como irão gastar o dinheiro do prêmio, do jogo, afinal são milhões. E uma fazenda custa milhões. Mas não irão investir em soja. Porque soja já tem demais.
E fazem a lista do que irão comprar: uma cadeira espreguiçadeira, um carro importado, um preto e outro prata, alugar um restaurante por uma semana. Continua a lista interminável do que se COMPRAR, COMPRAR, COMPRAR, COMPRAR. A voz ecoa. COMPRAR. Consumir. Eletrodomésticos, eletroeletrônicos, móveis, imóveis.
Pensam em jogar cada um em sua própria sorte. Mas e se você ganhar e eu não? Eu farei o que qualquer um faria. Inclusive, o que você faria. Em nenhum momento dizem o que é. É money, cash, bufunfa, dinheiros, dilmas. Podia chover dinheiro. Podia. Mas só o que acontece é as folhas caírem das árvores no outono.
Falam sobre felicidade e uma luz colorida acende no meio da máquina, mas em seu labor diário, parecem não reparar no que está a sua volta.
Com o fim da peça, os personagens continuam a carregar o fardo de seus dias, a andar com seus sapatos na canela, como se estivessem em outro plano, e enxergam a cidade a se aproximar, porque veem o que só eles podem ver. “Você não vê o que eu vejo. Mas como você pode ter certeza se só vê o que você vê?”. Ditados populares entram em cena. Quem espera sempre alcança. A pressa é inimiga da perfeição.
Saindo do teatro, enquanto os personagens continuam a carregar suas engrenagens (eles só param quando todo o público tiver saído), minha mãe diz que a peça a lembrou do primeiro capítulo do livro Capitalismo e Esquizofrenia.
Parece que ainda escuto os sonoros risos, como se não entendessem que a Cidade dos Outros somos nós mesmos.
Tive lembrança, enquanto assistia, de aulas sobre filosofia da história. Além da discussão da sociedade de consumo, a peça me entregou um monte de coisas sobre a concepção de tempo. As engrenagens, a forma como os personagens caminhavam, circularmente, sempre presas. Até os diálogos em forma repetida, sem linearidade, parece ter rompido com a concepção daquela velha flecha temporal. Foi como se toda discussão do materialismo histórico fosse sobreposto ao tempo em forma de círculo. O que sobrou foi a inércia batendo nas paredes de um disco que prende tudo. Presente, futuro? Conflitos por algo melhor? Na circularidade o que importa é ganhar dinheiro num jogo e gastar tudo alugando um restaurante, comprando boi, cavalo, carro. Às atrizes, aplausos. Ao cenário o elogio de ser simples e compactuar com movimentos e luzes à narrativa.
Que bacana, Arthur. Quando estávamos fazendo esse espetáculo pensamos muito no tempo como parte dessa engrenagem que nos oprime, mas que também nos liberta. O tempo marca cada passo e enquanto o tempo passa, nada é feito. A inércia dos personagens diante do que está na sua frente é angustiante. Depois de 6 anos de apresentação, várias turnês e circuitos, ainda estamos nos surpreendendo com esses caras. Ou será que é com nós mesmos e nossa apatia? Agradeço o texto, Marianna! Grande abraço, Arthur!