Como disse o poeta Antonio Carlos Lima, vulgo Toninho Caximir, “depois de todo trinta e um de março vem sempre um primeiro de abril”; o próprio calendário acusa. Quando se fala da mordaça que se adequou ao regime e aos direitos individuais, encontramos na arte um pouco do que foi a resistência: parangolê, meu irmão! Mas não falemos apenas das metáforas de Chico Buarque, do universo alegórico da Tropicália, das obras emblemáticas de Rubem Fonseca, sobretudo seu “Feliz Ano Novo”.
No vasto campo da literatura frutificam inúmeras representações que evocam aqueles tempos. Sempre é bom lembrar que para cada momento de impertinência dos ocupantes do poder, há uma espécie de renovação estética que garante musculatura aos artífices do campo das artes. “Zero”, de Loyola Brandão, “O que é isso, companheiro”, de Fernando Gabeira, “Carbonários”, de Alfredo Sirkis” são algumas dessas pérolas que deveriam povoar as galerias de bibliotecas públicas e privadas quando o assunto é ditadura militar.
Limitar qualquer acervo de representações desta ordem é despovoar nosso imaginário da necessidade de se refletir sobre acontecimentos bruscos que interrompem o curso natural das coisas, da evolução do homem, do mergulho em um tempo de contestação e busca por garantias ao que nos tem sido retirado aos poucos. E nesse cenário vão surgindo coisas interessantes. O novo romance de Joca Reiners Terron é uma dessas referências.
“Noite dentro da noite” é uma obra densa que perpassa o meio liquefeito de que se compõe a colcha de retalhos da ditadura em solo latino-americano. Nas palavras do editor, que margeiam as orelhas do livro, define-se o campo de atuação da escrita:
Do esquecimento à lembrança, o itinerário atravessa Mato Grosso e Paraná enquanto reproduz um duplo que liga o regime militar brasileiro à Segunda Guerra Mundial. Experimentações químicas recortam o imaginário do leitor junto a sequestros, assassinatos, desaparecimento de corpos, maus tratos infantis e demais ingredientes que criam um thriller de suspense dentro do moto contínuo em que o narrador coloca o leitor. Um estado permanente de tensão percorre o calhamaço de 463 páginas de quem você quer se livrar sem pular as páginas, mas também retido nas malhas de um texto veloz e furioso como a geada de 1975 que assolou o sul do Brasil. “Por isso esta história está em pane. O tempo congelou, e o início e o final dela se embaralham” (TERRON, 2017, p. 24).
Até mesmo para não cair na denúncia barata, em um frívolo comentário panfletário de que se nutrem escritores de pouca imaginação, Terron caprichosamente sai em busca de atenuantes estilísticos, como se observa no fragmento a seguir: “Não sabiam que seu companheiro caíra numa emboscada na noite anterior e àquela altura recitava no pau de arara um a um os nomes dos rebelados, além de indicar seu paradeiro” (TERRON, 2017, p. 120).
Faz-se necessária essa reflexão, pois já não é sem tempo. Que os golpes de 1964 e o de agora sejam em pouco tempo apenas referência histórica e possamos ultrapassar essas fronteiras para além do esquecimento. É Preciso se olvidar, mas para que não restem dúvidas quanto a essa necessidade, um pouco de leitura e esclarecimento só nos fará bem. “Noite dentro da noite” nos tira um pouco desse poço sem fundo que tem se tornado a realidade brasileira nos últimos dias.
REFERÊNCIAS
TERRON, Joca Reiners. Noite dentro da Noite. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.