Só há inocência onde o passado não existe, Damiana (ARNAUD, 2016, p. 73).
Maria Valéria, ao final do texto de orelha chama a atenção para a necessidade de compreensão desse “momento de sombras e voltar a sonhar com realismo”. O livro é de 2016. “Liturgia do Fim”, às vezes soa demais ritualístico (e o é!), como se torna portador de litanias, ladainhas, cenário de culpas e tragédias familiares que crescem à sombra da passagem do tempo. Um mergulho profundo na substância psíquica de um narrador-personagem que se mostra num crescendo abandono em forma de desamparo, como o próprio se confessa lentamente. “… órfão de mim mesmo, eu estava lá e não estava, e embora a manhã espanejasse a plumagem de luz sobre todas as coisas, eram as asas da noite que se estendiam por cima da Perdição” (ARNAUD, 2016, p. 11).
Augusto dos Anjos, Edgar Allan Poe, Kafka e outros autores têm fragmentos estilhaçados colados nas rememorações do narrador. Ele, que constituiu família, mas se fechou entre os seus livros, que teve esposa e filha, mas nunca se permitiu a felicidade familiar. “Não o protagonista ingênuo e inofensivo que a princípio enxergara em mim, tampouco o herói íntegro, jogado às feras de um mundo desigual, mas um outro, um Inácio camuflado à sombra de vidas inventadas, de palavras que contavam sem contar” (idem, p. 25). O título surge em reflexão do próprio escritor/narrador/personagem que anuncia a volta para o vilarejo a fim de encarar o pai. Desenha-se o confronto, muitos anos depois da expulsão de casa.
Não desacreditei dos meus olhos quando vi mamãe surgir com semblante de despedida, as pálpebras papudas de tanto chorar. Entregou-me algum dinheiro e uma bolsa de viagem com meus parcos pertences. Esqueceu-se de me levar os poemas de Augusto, confirmando, no lapso, que quem partia não era eu, mas um simulacro de mim, que em minha inteireza Eu ficava (idem, p. 35).
O eu de si, e o Eu (poemas de Augusto) confrontados na citação dão o tom onírico/funesto da narrativa. Creio ser esse um romance de memória, auto-reflexivo, até porque o mergulho interior nos apresenta o narrador em processo de questionamento da própria existência. E a fabulação contrita nos traz aos olhos um personagem amargo. “Todo ali, em seu sólio de memória, o passado imperava, dos odores familiares de cera de soalho, couro e mel à visão do Jesus de gesso em alto-relevo apontando para o coração estraçalhado, ao carrilhão sem ponteiros, numa pausa imperturbável, o pássaro do tempo acorrentado nas engrenagens emperradas” (idem, p. 45).
As páginas se sucedem e a linguagem vigorosa de Marília Arnaud constrói lentamente a figura assombrada que busca o confronto. A questão essencial da personagem vai ficando clara, reafirma-se o tempo todo pelo desconforto a que se presta e cuja literatura não dá conta de abarcar. O encontro se desenha sem maiores complicações: “… ali estava meu pai, desapossado da dignidade que a juventude confere ao homem, humilhado pela velhice – qual de nós dois a vida derrotara com mais violência?” (idem, p. 64).
Seu pai passou boa parte da vida envolvido com a criação de abelhas. A narrativa está povoada de expressões desse campo semântico, tais como mel, favo, melgueira, dentre outras. “Enganara-me ao pensar que pudesse invadir a colmeia do passado e sair são e salvo. Ali, diante dele, eu era novamente o menino que se embrenhava na mata para escapar dos castigos” (idem, p. 64). Damiana, espécie de dama de companhia (às avessas) da família, acompanha o velho até seus últimos dias.
A tia, que vive no sótão e que também foi mãe de um filho (bastardo) do velho, portanto, seu irmão, disfarçada pelas relações patriarcais que fazem desta obra uma fronteira com a de Raduan Nassar, como aponta uma ou outra crítica. O sótão como metáfora potente de um inconsciente à deriva, mas parte das mesmas águas. Óh, Bachelard.
Damiana insiste o tempo todo para que ele perdoe a seu pai. E não o faz! O martírio a que se submete o acompanha até o fim dos dias de seu velho. “O que de fato eu construíra durante mais de três décadas? Carreira, livros, família? Pois tudo isso, que se traduzia em nada, no fim das contas não passara da tentativa de construção de um homem para o olhar de um pai” (idem, p. 123).
Inácio vaga pela imaginação do leitor, pelo menos em mim. Não se sabe se ficara em Perdição depois daquilo. Não se ouviu mais falar de nenhuma publicação. Onde estão Ieda e Isabel; esta tornou a ver o pai? Penso em meu pai, falecido há pouco mais de um ano, que nunca foi de bater em filho, que não era como o Joaquim Boaventura. Ainda assim eu tive tempo e vontade de pedir perdão por minhas incompreensões da vida. Ufa. Como se vive sem a literatura?
REFERÊNCIA
Arnaud, Marília. Liturgia do Fim. São Paulo: Tordesilhas, 2016.